quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Carta para Isabela



Cara Isabella

Bem-vinda ao pavilhão de entrada do maravilhoso mundo dos adultos. Você está prestes a completar 18 anos e esse é um daqueles grandes momentos da vida. 

Passei por isso há muito tempo. Cometi um milhão de erros que, certamente, você não cometerá. Mas algo me mantém vivo até hoje. Um presente precioso que, em um dia encantado, recebi de um sábio, a beira de um certo riacho.

Ele entregou-me cinco chaves. Cada uma abre uma porta desse mundo que agora se anuncia a você. Aceite, pois, esse presente. As chaves agora são suas.

Logo na entrada desse planeta você notará um imenso jardim com um gramado verde interminável, onde as pessoas falam, falam, falam, mas são incapazes de escutar.

Sim, minha querida, um dos maiores problemas desse novo mundo é a surdez. Há um surto de deficiência auditiva que devora o planeta, destrói famílias e aniquila relações.

Todos falam, desesperadamente.  Mas, poucos são capazes de escutar.

Com essa primeira chave, ganhará o talento de ouvir.  Quando alguém tiver algo a lhe dizer basta  concentrar-se, olhar  nos olhos e ouvir com paciência.  

Ah, Isabela. As pessoas nem vão acreditar que alguém naquele jardim é capaz de escutar. Você será cercada por homens e mulheres que querem contar suas histórias, suas dores e pecados.... Apenas e tão somente por ouvi-las, será uma espécie de heroína do mundo dos adultos.

Cruzando o jardim dos surdos, avistará uma longa estrada com pessoas que andam rapidamente, se esbarrando e tropeçando nos próprios pés e pernas.

Notará que querem seguir adiante, rápido e sempre. Elas pisam umas nas outras apenas para seguir adiante.

Personagens de um vídeo-game cruel, a cada vez que solapam um companheiro de estrada, ganham uma vida e ficam mais fortes.

Por outro lado, sobrinha linda, note bem que essas pessoas enquanto avançam, tornam-se mais feias, amarguradas e tristes. Por vezes, para ganhar uma nova vida, pisam naqueles que amam porque só enxergam aquilo que querem.

Com a segunda chave, ganhará o dom da visão, com olhos de enxergar. Para usar essa chave, olhe além dos olhos, busque o coração e alcance a alma. Verá que mesmo entre os mais feios e egoístas existe algo de bom.

Com essa chave, não pisará em ninguém e o universo tratará de conspirar pela sua proteção.

Olhe para direita, logo nos primeiros quilômetros do caminho dos cegos e encontrará um lindo bosque, cheio de frutas e guloseimas, as mais saborosas de todo o planeta.

Nesse bosque, todos os sabores estão disponíveis. O doce, o salgado, o amargo, o azedo... Todos são incríveis, dependendo da quantidade, de como se misturam e do momento da degustação.

Verá que sob as árvores há pessoas felizes que aprenderam a provar de tudo com sabedoria e delicadeza.

Mas, também notará gente desesperada ao perceber  que os frutos de determinada árvore desapareceram. Não era para menos, afinal, comeram tudo no início da estação...

Essa terceira chave que agora passo às suas mãos lhe confere o poder de degustar, sentir, provar, saborear. 

Para utilizá-la basta respeitar cada árvore e entender que a vida é feita de momentos certos e da melhor hora para semear, regar, colher e, finalmente, provar...

Quando essas pessoas tristes que já provaram do melhor e do pior tentarem se aproximar, use a quarta chave que agora é sua.

Ela é poderosa porque te permite estender as mãos e tocar, acarinhar, afagar... Para esses que precisam de você, às vezes é melhor não dizer nada. Apenas oferecer um abraço, um ombro amigo, um momento de carinho.

Nenhum fruto desse bosque é tão poderoso quanto a quarta chave. É o poder do toque que agora repasso a você.

Por fim, minha querida, saiba que esse mundo, esse bosque e essa estrada, estão cheios de armadilhas. Nem sempre é possível avistá-las. Algumas estão escondidas dentro de você. Em outras terá de cair para ganhar uma lição.

Porém as mais doloridas, creia, são perceptíveis à distância. Armadas com cuidado, possuem sempre um chamariz, um atrativo com um cheiro próprio.

Com a última chave, minha linda, será capaz de farejar os perigos da vida e perceber que a maldade existe sim, por mais dolorido que seja reconhecer isso entre aqueles que, até outro dia, eram seus amigos, no planeta das crianças.

Sabe, Isabela, você tem dentro de si tudo o que precisa para explorar e descobrir o melhor desse mundo.

Tem energia para correr pelas estradas, tempo para caminhar nos gramados, saúde  para colher e provar os melhores frutos.

Apenas não esqueça que estará acompanhada nessa jornada. Que para sonhar forte é preciso sonhar junto.

Divida o melhor e descarte o pior. Use esse presente com sabedoria e, quando achar que sim, repasse para alguém que ama. Nesse dia, nos encontraremos as margens daquele certo riacho onde recebi o meu chaveiro mágico.

O lugar se chama maturidade. Te espero!

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O quadro que chora....(*)


Teresa se interessa por cores e volumes. Cores fortes e contrastantes. Ela transita entre tons de vermelho, amarelo, azul, roxo e um certo verde, cada vez mais iluminado. Teresa acredita na contemporaneidade colorida e no futuro como maquinista da vida.

Invejo os otimistas como Teresa. O que seria do mundo sem eles, afinal? Acho incrível acreditar no futuro. Pra mim, este cara, o futuro,  é um velho carrancudo aguardando sempre o momento de te ferir. Queria muito conhecê-lo melhor, mas meu assunto é outro...

Teresa investiga e instiga o impulso primeiro do homem, na sua vibração de origem que,  antes de ser mental ou espiritual, é físico e conquista o mundo com sua força. O mesmo impulso que leva as mãos do observador ao contato com o seu mundo.

Quase como no espelho de Alice, eu procuro incessantemente entender o que o homem deixou ao longo da vida e como ele resgata e modifica o que passou. 

O universo de Teresa requer algum tempo para que intrusos sintam-se confortáveis e descansem o olhar. Num primeiro momento, caminhando entre formas e cores, um desavisado pode ter receio daquilo que parece desprender-se das paredes em sua direção.

Mas, esse planeta todo particular fica calmo e aconchegante depois de alguns minutos de imersão. Os volumes pedem o toque e as mãos não resistem... Deslizam por nervos expostos que criam caminhos sem começo nem fim.

Esse labirinto me remete às aulas de pintura  da minha infância e às tardes de mergulhos em tintas e telas que vivi ao lado da minha ruivinha, lambuzando os dedos, móveis e tudo mais.

Caminhando no mundo colorido de Teresa ouvi um gemido num canto escuro. Sim, ali estavam as mesmas cores e formas, entretanto, não havia alegria naquele quadrado. As formas choravam para mim. Literalmente, choravam....

Por piedade, estendi as mãos e toquei a obra que respingou no meu dedo um líquido oleoso, resultado da fusão das cores... Um marrom que o próprio quadro produziu para pintar a parede que lhe restou... Suas lágrimas....

Como os tombos da vida, aquele que ali estava foi uma mistura que tomou outro rumo. Um filho daqueles que, mesmo criado em berço esplêndido, escolhe um caminho obscuro e incomoda, destoa, provoca toda a família.

Um filho que nasceu em 1999.  Ano em que foram engarrafados os melhores vinhos produzidos no Brasil. Minha Luísa se preparava para vir ao mundo. Em março, um grande blecaute deixou 50 milhões de pessoas no escuro. O Plano Real acabou e o câmbio flutuante fez muita gente boiar. Ano de verdades, esse 1999.

Nasceu como seus irmãos de cor e força. Mas encarou a vida sob outro ângulo. Quis pular a janela daquela poesia e encontrou um mundo duro que, a cada dia, teima em destruir sua alegria.

Ahhh esse futuro que Teresa pinta... “Nada pode ser tão colorido assim”, parece nos dizer o pobre chorão, como um palhaço que desmancha a própria maquiagem ou a mulher decadente depois de horas de música e álcool.

Ali, em meio a tanta cor e magia, encontrei algo que já foi futuro e hoje é um passado que se transforma todos os dias. Uma úlcera rompeu sua carne e ameaça destruí-lo aos poucos, cruelmente e sem piedade.

Mas resta-lhe um estranho brilho que o tempo estampa em luz. Algo que lembra o quanto foi bom, mas grita: não há graça no envelhecer! Morremos um pouco a cada dia, ainda que a morte se aproxime com brilho.

Essa intersecção entre nossos mundos, o quadro que chora, roubou meu olhar. No próximo encontro, como eu, como ela, ele também será outro sujeito, com as cores do tempo, os caprichos do espaço, entre o sorriso de Teresa e suas próprias, as nossas,  lágrimas...

(*) O quadro que chora é obra da artista Teresa Viana (www.teresaviana.com.br), amiga querida....

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Salve o Corinthians !!!! (*)


Naquele Corinthians e Palmeiras ele só pensava nela. Nunca gostou de futebol. Desde muito menino, sua relação com a pelota era distante, sem a menor intimidade. E não adianta: entre meninos, quem não joga, não torce.

Ela, morena faceira, viu anos antes Sócrates encantar o mundo com seu calcanhar, com sua elegância.  Filha e irmã de corinthianos, essa alvinegra de nascença não perdia um jogo. Na faculdade,  não havia trabalho ou prova capaz de impedi-la de correr pro estádio às quartas-feiras.

Mas aquela quarta era diferente.  O rapaz metido a politizado, típico bicho-grilo-pós-ditadura, convidara a moça para um jantar. Galanteador, descobriu seu endereço e enviou flores como convite.

Ela nunca entenderia seu galanteio. Ele nunca entenderia sua verdadeira paixão.

As flores foram ajeitadas às pressas numa garrafa transformada em vaso - ela não era acostumada a manifestações daquela espécie - e as costas do cartão que acompanhava o ramalhete serviram perfeitamente para a resposta:

"mas, puxa, justo hoje? dia de derby? não dá. PS: adorei as rosas."

O garoto da entrega levou de volta a magra gorjeta e, junto, o pequeno envelope. Enquanto a garota corria de volta pro seu quarto decorado em preto e branco para a concentração de praxe.

O rapaz tinha combinado de receber um telefonema da floricultura confirmando a entrega. Feito. Foi confirmado inclusive que um bilhete tinha retornado.

"Pode ler pra mim?", pediu, encafifado. Feito também.

"Derby?", perguntou, misto de aflição e tristeza, no que o moço das flores fez questão de explicar:

"É como a gente fala quando joga Palmeiras e Corinthians. Classicaço! Verdão, eô".

Para ele, Derby era uma marca de cigarro de segunda. Sim, ele fumava, porque, na época, era bem bacana fumar. Todos os seus amigos de copo e política eram fumantes inveterados.

E que história é essa de “adorei as rosas”? Isso lá é resposta?

“Criatura alienada, essa moça”, resmungou nosso herói.

Ele ficou completamente desolado. Falaria para ela coisas sobre suas convicções de como o cancelamento da dívida externa poderia livrar o Brasil do processo inflacionário e devolver o país ao ritmo de crescimento pré-ditadura.

Também poderia comentar sobre o relançamento do Pasquim e da sua coleção particular com os originais dos anos 60. E até sobre aquele exemplar de Realidade que conseguiu em um sebo no centro da cidade.
“Perderia meu tempo”, continuou praguejando.

A certeza é a pior praga da juventude. Mal sabia ele que ali estava uma futura mulher de negócios bem-sucedida, uma apaixonada pelas formas e cores de Almodóvar, mãe exemplar e amiga das mais fiéis.

Não, nada disso fazia parte do horizonte do boboca ferido no seu intuito. Bastaria que mudasse o dia do jantar. Mas, ele preferiu mudar toda a sua vida.

Ela, por sua vez, foi ao clássico - um morno zero a zero, com direito à garoa, carro longe à beça, amendoins murchos - e, em algum momento daquele perrengue, pensou no quase-jantar. Nunca tinha olhado pro tal com olhos de cobiça: vivia reclusa em uma turma muito particular, que respirava futebol. E contava o fato de que nessa turma tinha um affair, ou quase isso, com um corinthiano da ZL - que, naquela quarta-feira, furou. Ou seja, jogo mais que morno: gelado.

Mas então o colega bicho-grilo dito politizado queria jantar com ela? Elazinha? Que assunto teriam? Que liga isso daria? Voltou pra casa tremendo de frio, mas com a cabeça quente, pensando em como seria. E pegou no sono, olhando pro vaso improvisado que acolhia as rosas vermelhas - suas preferidas, passionais como ela, como sua relação com o Corinthians e com a vida.

E assim foi. Vida que segue para os dois, com tantas mudanças, mas duas questões que permaneciam firmes: um novo convite pra jantar (que não veio) e a paixão dela pelo Timão.

Nesse momento, a vida deu mais um grande salto. Aquele solavanco do sonho universitário para a realidade do mundo dos adultos.

O rapaz substituiu a política pelos negócios. A dívida externa foi paga e ele nem notou.... A garota tornou-se empresária e o Timão, ahhh o Timão, motivo de sangue, suor e lágrimas divididas com dramas familiares, perdas, ganhos e tropeços.

Cada qual no seu caminho, encontrou o par mais próximo entre o jantar romântico e o  Pacaembu. Ele casou-se com uma bela ragatza e ela com um apaixonado por futebol.

Na nova família, o ex-bicho-grilo-politizado-atual-homem-de-negócios e, quem diria, professor exigente, mergulhou em um consenso tricolor irritante. Consenso e futebol não combinam, definitivamente.

Seu lado político reascendeu em favor da boa polêmica. Tornou-se Corinthiano apenas para provocar sogro, sogra, primos e primas.

Ela descobriu que entre quartas e domingos havia espaço para outra paixão além do futebol: o cinema. Mergulhou de cabeça nas tintas de Almodóvar e viu o tempo passar com sua filmografia.

Fale com ela, Ata-me, Tudo sobre minha mãe e Volver embalaram sonhos e reflexões. Na tela, as cores de uma juventude por vezes sombreada pela realidade preto e branca.

A vida fez com que o rapaz e a moça virassem tudo ao avesso mais de uma vez. Queriam sim reencontrar certezas e vibrar com emoções e ansiedades que aos poucos desapareceram....

De algum modo, procuravam aquela noite de quarta-feira, quando tudo poderia mudar....

E o filme da vida provocou o reencontro - quem diria - logo após um jogo do Timão, em A Pele que Habito....

Era mesmo ela, ali, na saída do cinema, com o Shopping vazio como testemunha. As covinhas e o nariz perfeito.

Sim, era ele também, com cabelos grisalhos e uma barba mal aparada. Conservou o charme pseudo intelectual de esquerda.

A torcedora mostrava orgulhosa a foto do seu menino, quase da mesma idade da pequena cuja imagem era o pano de fundo do celular do pai.

Ambos mais serenos e ponderados nem tocaram naquela noite, naquelas flores, naquele jogo. Comentaram sobre o final infeliz do filme e, claro, sobre o campeonato que vivia seus últimos momentos.

Nas redes sociais, falaram mais sobre a vida, o fim dos casamentos e suas procuras – antigas e novas.
Dessa vez, o convite veio dela:

“Vamos juntos assistir a final do campeonato? Um derby histórico !!! Podemos levar as crianças”, propõe.

O reencontro aconteceu no almoço de domingo. Novamente um empate, porém, bem mais emocionante que naquela quarta-feira.

Já no momento vídeo-game, ele respirou fundo e reuniu todas as suas forças para relançar o convite, perdido há 24 anos.

“Eu queria....”, começou...

Mas, sua filha interrompeu:

“Pai, pai podemos ir ao cinema juntos assistir Harry Potter? Diz que sim, vai...  Aí, depois, vamos comer um hambúrguer....”

A moça ansiosa, ainda insistiu:

“Você dizia....”

E ele respondeu:

“Dizia que o jogo foi incrível e precisamos levar esses dois ao cinema. Quando é bom pra você? Quarta-feira?”

(*) Texto escrito em parceria com a jornalista Renata Ruffato... Revisitamos o passado brincando com a ficção..

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Despedida....


Conheci este cara aos 12 anos. Fátima, uma linda ruiva – minha vida está marcada por elas – apresentou-me a ele. Ela era muuitoo mais velha, tinha 15, quase uma mulher.  Seu aval foi importante para o início dessa amizade. Logo no primeiro contato, nos entendemos bem, parecíamos íntimos.

Amigos de verdade quando chegam são assim. Não têm muito pudor. Naquela época, eu era o único pré-adolescente da turma que me relacionava com ele. Um baita status para um pirralho.

Acabara de chegar de Santo André, cidade da região do ABC com hábitos provincianos e jeitão de interior desenvolvido.  Ali meu amigo era bem pouco conhecido e, para ser sincero, não gozava de boa fama.

Quando cheguei em Moema, havia um novo mundo a descobrir. Um mundo com atrações incríveis, perigos e aventuras. O maravilhoso mundo do Shopping Center. Conheci todos eles naqueles anos 80.

Ibirapuera, quadrado e fácil de localizar as lojas, tinha atrações como as Lojas Americanas, alvo fácil para pequenos furtos de balas e chicletes.  No último piso, o Pastel&Coke, que servia uma maravilha de banana com um balde de coca-cola.

Matava as aulas do velho e bom Instituto de Ensino Tabajara e seguia para o Shopping, com meu parceiro e amigo inseparável. Quando não encontrava o chapa, era fácil localizá-lo entre amigos comuns.

Assim também acontecia no Morumbi, com sua pista de patinação no gelo e no Eldorado e aquele Boulevard vintage, na época , algo muito sofisticado.

Meu amigo também estava comigo nos parques,  onde levei as primeiras namoradas para beijar recostado em árvores ou à beira do lago.

Seguimos juntos, ginásio a fora, colegial e tudo mais. Esse cara, ousado, invadia a escola e chegou a render advertências e suspensões que escondi habilmente dos meus pais.

Quando entrei na faculdade, ele já estava entre os professores. Tinha um jeitão intelectual, descolado e charmoso. Homem feito, freqüentava as melhores rodas e sempre me levava com ele.

Mais tarde, formado, fui seu “foca” em redações  de rádio como Jovem Pan, Trianon e jornais como Folha da Tarde e Shopping News. Nos momentos mais tensos foi ele que me amparou, sempre com uma boa idéia e uma palavra calmante.

Descobri ao lado dele minha primeira paixão. Me aconselhei com o amigo:

- Vai que, se der errado, estarei por aqui – disse ele.

Dito e feito. Quebrei a cara. E lá estava meu amigo a me consolar.

Confiava tanto nesse sujeito que, quando não sabia como me aproximar de uma mulher, ele entrava no circuito e resolvia o problema.

Aos 26 anos, me casei e ele foi padrinho. Estava comigo na cerimônia e na festa até o final. Foi nesse momento que nossa amizade sofreu o seu primeiro abalo.

Começava a circular por aí que aquele amigo de todas as horas tinha um lado ruim, marginal. Amigos comuns passaram a afastar-se do sujeito e bastava que estivesse com ele para que alguém olhasse torto e até fizesse um comentário maldoso.

Era o início da decadência. Vi meu amigo publicamente enxotado, com fotos e frases contrárias por todos os lados.

Ele foi personagem de páginas policiais, documentários e longas matérias nas revistas semanais. Só um grupo muito restrito permaneceu ao seu lado nesse momento difícil.

Resisti bravamente, mas tudo tem um limite. Quando começaram a chamá-lo de assassino, tive que por um fim em nossa amizade.

Minha esposa anunciava a gravidez e, nessa nova condição, por mais que gostasse do meu amigo, não poderia me dar ao luxo de ter alguém assim dentro de casa.

Surge a minha segunda ruiva. Luísa não o conheceu até os 9 anos. Sabia seu nome, mas não queria nem ouvir falar no cara.

Um dia, em uma mesa de bar, ele chegou cabisbaixo e choroso. Confessou as bobagens da vida e pediu um lugar, um papo.  Não consegui negar.

Passamos a nos encontrar mais nos finais de semana, depois almoços, happy hours e, quando menos esperava, renovamos essa amizade.

Nos últimos três anos, tentei recolocar o sujeito no meu convívio social, nas minhas rodas, sempre em vão. Quando ele chegava, tinha que sair de onde estava porque, nem eu, nem ele, nos sentíamos a vontade para lidar com olhares de reprovação.

Na manhã deste 30 de novembro, ele esteve em minha casa para uma despedida. Melancólico, chegou cedo e disse que não me encontraria mais. Antes, no entanto, lembramos de aventuras e desventuras que curtimos juntos por esses 19 anos, quase metade da minha vida.

Ele se foi...

Parei de fumar e perdi o maior companheiro que já tive. Do ócio criativo à melancolia, passando por comemorações e perdas, nascimentos e mortes, ele sempre esteve ao meu alcance.

Como tudo na vida termina, chegou a hora de dar adeus ao companheiro. Só os fumantes sabem porque é tão difícil deixar o cigarro.

Como diz a canção “o cigarro, o café e um trago – tudo isso não é vício. São companheiros da solidão e a gente ainda paga por isso”.

A despeito de todo o mal que “meu amigo” causou, a cada cerveja, a cada alegria, a cada tristeza, ele será lembrado.

Mais fácil seria, unir-me ao coro de linchamento. Não seria justo, nem verdadeiro.

Que vá em paz!

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Era uma vez... (*)



Em um reino muito, muito distante havia um boneco de pau chamado Pinóquio. Seu sonho era virar um menino de verdade.

Boneco de periferia, viu seus amiguinhos humanos crescerem. Pinóquio ficava pensando como seria bom sentir frio, calor, o sabor das frutas e o cheiro da relva.

Aos 18 anos, o melhor amigo de Pinóquio financiou uma moto. Começou a entregar pizzas e, nas horas vagas, fazer uma “correria” para os “manos” da vila. Fugindo de uma viatura, caiu e quebrou uma perna e um braço e ainda foi preso.

Pinóquio, assustado, desistiu do seu intento, com medo da dor que o amigo sofrera. Mas uma fada ecológica surgiu sobre a cama do boneco e sentenciou:

- Você foi feito de madeira nativa, devastando o meio ambiente e não pode continuar assim, disse a fada, lançando o encanto com sua varinha de led – que economiza energia.

Pronto. O boneco virou um marmanjo, equipado com carteira de trabalho e hoje, tenta ganhar a vida naquele reino que, de tão, tão distante, demanda três conduções para ir e duas para voltar do emprego que conseguiu em uma vídeo locadora erótica no centro da cidade.

Em terras vizinhas, do mesmo reino, viviam três porquinhos empreiteiros: Cícero, Heitor e Prático.

Cícero construía casas em áreas de manancial e vendia baratinho para os súditos metidos a espertos. Heitor era agiota e emprestava dinheiro para financiar as casas com juros abusivos. E Prático, honesto que só, erguia uma casa por vez e vendia à vista, com dificuldade.

Em um dia frio, o Lobo fiscal chegou e pulou no pescoço de Cícero.

- Calma, calma – disse o porco – conversando, tudo se resolve.

Mas o Lobo não queria saber e esbravejou, soprou  e bufou, até que chegou Heitor, com uma mala preta cheia de dinheiro.

Mais calmo, o Lobo argumentou que não podia voltar para a repartição sem nenhuma autuação.

- Tenho o que você precisa, disse Heitor.

O Lobão submeteu as obras de Prático à uma intensa fiscalização e encontrou todos as irregularidades possíveis. Impetrou logo umas vinte multas e uma raposa-repórter amiga do fiscal fez uma longa matéria denunciando o pobre porco, no Jornal Nacional.

Feliz e com a mala cheia, saiu o lobo pelo bosque, comemorando o dia gordo. Por ali, passava uma menininha linda, de vestido xadrez bem curtinho e uma capa vermelha. Ela vendia doces para sobreviver.

Galanteador, o Lobo tenta conquistar a moça e compra logo todo o cesto de guloseimas.  Chapeuzinho foi o nome que usou. Acostumada com os safados da floresta, marcou um encontro com o lobo, perto de uma enorme árvore, no alto de uma colina.

Como todo malandro tem seu dia de mané, lá vai o lobo, com rosas nas mãos, aguardar a menina, sua próxima “refeição”.  Notando o atraso, percebe que a fofa passou o celular errado.  Uma pobre velhinha que atendeu.

Esfomeado, o Lobo não teve dúvidas. Fez uma voz de menininha abandonada, pegou o endereço da velhinha e partiu pra cima.

Pensionista da previdência do reino, aos 79 anos, passava a maior parte do tempo nas filas dos hospitais públicos e farmácias populares daquela terra encantada. O lobo não teve dificuldade nenhuma.

Por ali, passava uma tropa de elite, uma espécie de BOP medieval, com caçadores armados até os dentes. 

Ouviram os gritos e invadiram a casa. Diante dos sinais de violência constatados, partiram para cima do lobo para tentar salvar a velhinha.

Mas, com um rápido telefonema, o Lobo acionou o Sistema de Proteção Ambiental do Reino (SPA). Eles chegaram logo e argumentaram que, mesmo o Lobo tendo devorado a senhora, era um animal em extinção e deveria ser preservado.

Foi condenado por homicídio culposo, cometido pelo descontrole dos próprios instintos. Réu primário, sem antecedentes e com residência fixa, cumpriu seis meses e foi liberado. Hoje vive confortavelmente nas Ilhas Maurício.

Sentada em uma sala, cercada de comidinhas engordativas, estava uma certa formiga, que assistiu toda história em um documentário completo sobre as aventuras do Lobo mau, transmitido em uma emissora comunitária. Ficou indignada.

Formiga passou o verão trabalhando muito para ampliar sua casa e juntar alimentos.  Durante aqueles dias de sol, uma cigarra folgada ficou perambulando entre as tavernas do reino, enchendo a cara e cantando com aquela voz irritante.

A formiga, vendo o corpo padecer com tanto trabalho, ficou deprimida e se encheu de remédios, tamanha a inveja que tinha da cigarra de vida fácil e corpo perfeito. Toda a noite, diante do espelho, não se conformava com o tamanho dos seus quadris.

De repente, ouviu uma carruagem a buzinar na porta.

- Diga lá, tanajura – mangava a cigarra com voz notadamente amolecida pelo álcool.

Heitor, o porco-agiota estava nas rédeas  da carruagem.

Ainda tentando levar alguma vantagem, a formiga retruca:

-  Você que se acha esperta, aonde vai nesse frio absurdo?

Após uma gargalhada, a cigarra responde:

- Pra Paris, menina. Heitor aqui, comprou um pacote em oito vezes sem juros e vamos fugir do inverno...

Para humilhar ainda mais, reforça a cigarra:

- Quer alguma coisa de lá ???

Com lágrimas nos olhos e o coração transbordando em raiva, a formiga responde:

- Quero sim! Manda o La Fontaine pra puta-que-pariu!!!!!!!!!!!

(*) texto inspirado em um original apócrifo que circulou pela web, sobre a fábula da cigarra e formiga... como sempre achei essas fábulas esquisitas, não resisti...

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Meu Terço (em memória de Gabriela Machado de Lima)




Naquela tarde, naquela sala, chorei um choro menino, desses sem mais nem porque, que não se sabe bem, se dor ou emoção, tristeza ou saudade.

Salas e templos são quase a mesma coisa quando a oração toma conta do lugar. Pessoas unidas repetindo as mesmas palavras, invocando o que tem de melhor, alcançam um pedaço do céu e tocam a Deus com sua prece, com seu mantra.

Verdade seja dita, meu coração sangrava. Sobre o altar da mesa de centro, estavam dezenas de sacrifícios e oferendas que as escolhas da vida nos acumulam. Um passado que teimo em transformar com minha prosa.  Era o terço da minha vida que ecoava....

A Ave Maria, repetida como poesia era a mesma daquela missa que consagrou o vigário da velha paróquia do bairro Jardim, onde recebi a primeira eucaristia, vestindo calça vinho e camisa branca com gravata borboleta.

Após  a celebração, brilhantemente presidida pelo bispo da diocese, o coroinha receberia  a notícia da sua primeira grande perda, cuja saudade dá nome a este blog. Mesmo que o tempo e a distância digam não, eu e meus irmãos ainda choramos aquele momento.

Mal sabia que o sacerdote em questão seria cogitado como Papa e seu protegido na catedral de São Bernardo eleito o presidente mais popular da história do Brasil. Não importa. Naquele momento, o acólito rezava por mais um minuto ao lado do seu avô, apenas isso....

Mas a sala e a mesa eram grandes o suficiente para outras lembranças, bem mais leves e gostosas. Dos sobrinhos que ainda me tratam como tio, dos tios e tias que ganhei de graça ao longo da vida.

A tia copeira da rádio Jovem Pan que desviava o café antes mesmo de servir o dono da empresa. A tia do lanche dos estúdios Maurício de Sousa que curou minha pneumonia com xarope de agrião e mel. E como não lembrar a tia Jane, que me ensinou as primeiras letras.

Também ganhei esse cargo, quase honorífico de tio, há pouco tempo, quando a bela Isabela batizou-me eletronicamente como tal e fiquei todo orgulhoso. Matheus, Letícia, Amanda e Larissa também me chamam assim...

Outras delícias da vida passeavam entre as contas do terço: Bianca, minha afilhada por escolha dos seus pais,  e Bia, sua irmã, que me adotou como padrinho por conta e risco.

Entre as crianças que não são mais crianças, ali estava esse menino-homem que percorria as casas do bairro nas novenas e pedia com fervor as graças mais simples diante da imagem de Nossa  Senhora, virgem que certamente sorria com a inocência do seu filho. Era aquele menino que chorava no meio da sala, sem entender a própria emoção.

Como o terço, a vida tem seus mistérios. Custei a entender os momentos tristes que vivi e cheguei a rezar pedindo misericórdia. Mas, em momento algum, duvidei que era preciso seguir a ladainha sem perder a fé.

Assim foi quando Valtão nos deixou e outros filhos de pais incríveis ofereceram-me o ombro. Meus irmãos por escolha, Duda e Rogério, cruzaram antes essa ponte. Com eles, aprendi a rezar minha saudade e aceitar meu luto.

Viver a perda é dos aprendizados mais difíceis da vida. Talvez o grande desafio, sobretudo, depois da segunda metade da existência, quando passamos a enxergar a própria finitude.

Se soubesse disso, talvez fosse mais fácil esquecer a namorada que me deixou naquele carnaval de 91 e desfilou faceira na Sapucaí, para a tristeza do moço de 20 anos e muita vaidade. Hoje, rimos do episódio que outrora me consumia.

Outras paixões transformaram-se em saudade. Outras saudades em nostalgia. Amigos novos vieram, velhos amigos se foram. Essa é a contabilidade do tempo, a Salve Rainha do Rosário.

Esse talvez seja o mistério mais inquietante do terço que chamamos vida: como o passado se transforma dia após dia.

O segredo, revela-me baixinho Nossa Senhora, é fazer de cada sala um templo, da cada lembrança uma oferenda e, de cada prece, uma Ave Maria.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Luísa, nossa escultura



Cheguei em casa por volta das 11h30, naquele sábado, após uma maratona do mestrado, às voltas de investigar uma tal de infografia, entre teorias semióticas e metodologias complicadas. Estudava um certo “alfabetismo visual”, tentando compreender a linguagem que, hoje sei, só faz sentido quando o coração está no bico da pena.

Luciana estava na cozinha preparando algo para o almoço. Linda, Luciana, sempre linda. A voz mansa, o sorriso perfeito....Me encantei por ela na sala de aula. Professor inspirado, notei a moça de cabelos encaracolados logo nos primeiros dias de 1996. Ela vestia uma camisa  com estampa de oncinha e usava óculos de grau – adoro óculos. Eles protegem a beleza como uma cortina transparente.... Quando não estão lá, a luminosidade explode.

Naquela manhã, minha esposa estava especialmente feliz e não economizava sorrisos. Havia um brilho secreto nos seus olhos claros que remetiam ao nosso primeiro beijo no alto da megalópole, ao som de um bom piano...

Deixamos uma porção de lulas que nada combinava com vinho tinto de segunda  emborrachar sobre a mesa... Por mais de 10 anos, lembramos aquela noite.

Outras noites lindas vieram e um tema era freqüente: a continuidade. Sim, éramos jovens e deliciosamente sonhadores. Queríamos nosso canto, nossa história, nossa vida.

Namoramos pouco... Um ano, um mês e nove dias... Tempo suficiente para esboçar nossas primeiras telas, ainda com traços de carvão, rabiscando a vida, como se fôssemos capazes de desenhar o futuro.

Jornalistas que somos, começamos pelas letras. Surgiu um “L”, depois o “U” . Um estranho e mágico consenso  deu forma à palavra  Luísa, assim com “s” e acento no “I”.

Desenhamos seus cabelos, esculpimos seu rosto, iluminamos seus olhos... Nada nesse mundo foi criado com tanto zelo, tanto amor e tanto carinho. Nenhum desenho era tão real mesmo saindo das mãos de artistas amadores que éramos.

Naquela manhã de sábado, os esboços da nossa vida estavam quase todos prontos. Neles cabiam cenas de jantares deliciosamente longos, perfis de amigos eternos e rabiscos de viagens que tinham o oceano ao fundo.

Na mesa da sala, um envelope branco, com uma folha escrita com números e letras pequenas estava a minha espera. Cheguei esbaforido e olhei superficialmente. Não entendi muito bem... A ficha demorou a cair... Eram números de partículas com um referencial.

Luciana me induziu ao erro dizendo que não seria daquela vez. Li, reli e... EPA!!!!

Faltavam naquele papel os cabelos ruivos, olhos claros e o sorriso aberto. Ali também não estavam as manchas de noites acordadas, borrões de preocupações, medos e anseios.

Não havia no desenho das letras o movimento engraçado dos bracinhos abrindo de repente. Não havia nada. Mas, não importa... Luísa saltava do papel para as nossas vidas como o projeto de uma grande escultura.

Tive em minhas mãos um desenho de Amilcar de Castro para uma pulseira de prata que a joalheira Beth Loeb desenvolveu. Eram cartolinas enormes, com cálculos e rabiscos. Não importava para o mestre o tamanho de sua criação, mas sim a grandiosidade da idéia. Pulseiras delicadas ou esculturas gigantes brotavam da mesma forma.

Luísas tem um tom concretista. São grandes, fortes e imponentes. Não passam despercebidas.

Desde a Luísa de Tom Jobim, como um brilhante que partindo a luz explode em sete cores, passando por outras Luísas históricas que tive a honra de conhecer, todas enfrentam as três dimensões com muita coragem.

Luiza Eluf, promotora de aço que catalogou com propriedade os crimes contra mulheres, discursou para os meus alunos em uma noite inspirada.

Luiza Erundina, primeira prefeita que enfrentou a São Paulo de homens pouco educados e políticos corruptos, tive a honra de entrevistar em momentos críticos. Monumento de honestidade e coragem!

Luísas são assim, com S ou com Z, não vieram ao mundo para pouco. São esculturas perenes que fazem e contam a sua história sem medo do metal que Amilcar de Castro retorceu e do brilhante que Tom Jobim converteu em poesia.

Naquela manhã, era minha Luísa que se anunciava. Minha escultura  que, contra a luz, reflete tons de rosa e carmim.

Ao metal corajoso que forja o seu espírito, acrescentamos cores e contornos. Nas faces, arredondamos bochechas fartas com massa de bondade e verniz de alegria.

Desfiamos fios de ouro para recobrir a obra em alto estilo. O olhar, iluminamos como o céu que só Cézanne soube pintar, recoberto com resina forte de generosidade e compreensão.

O coração, esse sim, elemento crucial da escultura, eu e Luciana moldamos em dois tempos. Preenchi cada ventrículo com o amor pelos mais fracos e esse espírito de herói que todo jornalista carrega em sua alma.

A mãe deu o acabamento associando a ternura, a fragilidade toda feminina, a atenção com os mais velhos e a capacidade de chorar até em casamento errado.

Escondido, numa noite de luar, acrescentei  àquele coração o amor pelos animais que a mãe sempre quis distantes da sua casa.

Nossa escultura teve várias fases. Algumas mais arredondadas, outras pontiagudas e doloridas, como a suspeita de meningite aos primeiros dias de vida.

Hoje, nós, pretensos artistas, assistimos ao mundo acrescentar cores e tons à nossa obra. Dolorido, a cada dia, perder a autoria de algo tão lindo e fascinante.

Por outro lado, como obra aberta que somos, nos orgulhamos dos contornos que a vida acrescenta aos nossos traços.

Amanhã nossa escultura ganhará títulos e prêmios, honras e diplomas. O nome Luísa pode ser precedido de termos como doutora, engenheira, veterinária,  professora ou até – que Deus a livre – jornalista.

Mas apenas quando a criatura esculpir sua própria obra, compreenderá que nada nesse mundo é mais forte que o metal que a forjou: o amor!

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Santos é Longe?



Marcos é engraxate e não sabe nadar. Ele está tentando mudar de vida, mergulhar no mundo da corretagem. Aos finais de semana, trabalha em um lançamento imobiliário na Zona Leste e está prestes a realizar um grande sonho – o rapaz quer ser surfista.

O sonho veio do apelido, Surfista, que ganhou dos amigos da “vila” graças a seu visual despojado, com uma elegância jovial que talvez nem ele saiba reconhecer.

O rapaz fatura 50 reais por dia engraxando cuidadosamente sapatos na Vila Madalena. Se conseguir vender o imóvel, vai embolsar uma comissão de cinco mil reais, o equivalente a uma centena de dias trabalhados e alguns milhares de sapatos lustrosos.

Engraxate é dessas profissões cheias de dignidade que resistem aos novos tempos. Um sapato bem engraxado é algo bonito de usar e não há alternativas modernosas que substituam a escova e a flanela.

Ali, sentado em sua mala de trabalho, ele conta do seu sonho e diz que, em Santos, há uma escola de surfistas que não cobra nada. O menino pergunta:

- Santos é longe?

Penso muito para responder. Afinal, Santos é longe? Longe do que? Longe de quem? Qual a distância entre a caixa de sapatos e a prancha de surf?

Essa distância já foi bem menor, isso é fácil afirmar. Comecei a vida como Office-boy, ofício nobre.  Presidentes de grandes empresas começaram assim e sabiam valorizar aqueles meninos que, antes do surf, sonhavam com o posto de auxiliar de escritório.

Vieram os motoboys, marmanjos explorados, que terceirizam a sua esperança em empresas que podem prometer apenas o valor da corrida. No futuro, um motoboy será, no máximo, um motoboy, se der a sorte de sobreviver. Para ele, Santos é aquela alameda dos Jardins.

Quando era garoto desejei muito ter a minha própria caixa de engraxate. Alguns amigos tiveram a sua e faturaram bons trocados na vizinhança. Para todos nós, meninos de classe média, bem nascidos e nutridos, Santos nunca foi muito longe.

Mesmo assim, aprendemos a valorizar o trabalho desde cedo. Muito provavelmente porque encontramos pela vida aqueles que também valorizavam o que fazíamos. Na rua, engraxando ou levando documentos, aprendemos muito.

Aprendemos a nos resguardar, evitando trombadinhas e batedores de carteira (mundo romântico esse, de ladrões pouco agressivos, até habilidosos). Aprendemos a solidariedade, pagando as contas dos colegas boys para não perder o horário do banco.

Como era bom, no final do mês, ter um dinheirinho para pagar o cinema da namorada ou a pipoca da praça. É... Santos era ali na esquina...

Outros engraxates cruzaram o meu caminho ao longo da vida. Um deles, muito especialmente, ajudou-me a compreender uma grande lição de jornalismo.

O chefe era Fernando Vieira de Mello, homem genial, de personalidade forte e convicções indestrutíveis. Eu era rádio-escuta, uma espécie de Office boy da redação, o posto mais baixo daquele quartel.

Diretor de jornalismo da Jovem Pan, por 40 anos, Fernando reinventou o rádiojornalismo, assumindo a audiência rotativa como princípio de produção de notícias.

Eu assistia às reuniões de pauta esticando o ouvido na porta da sala. Fernando era um filósofo do cotidiano. Tirava leite de pedra e tinha uma idéia melhor do que a outra.

Mas, naquela manhã, o velho mestre estava irritado com a postura burocrática dos repórteres da rádio. Passou bons minutos lendo aquele calhamaço datilografado sem encontrar ali sequer uma boa idéia de matéria para aquele dia.

Fernando explodiu!!!  Rasgou as folhas, disse que cada repórter deveria saber o que fazer, sem pauta nenhuma. Saiu batendo os pés... Na porta flagrou-me assustado com a cena, agarrou o meu braço e me arrastou rádio afora.

Resmungava e esbravejava em direção ao elevador. Dizia que os repórteres eram todos uns idiotas sem iniciativa.

Já no térreo, segurando firme o meu ante-braço, sentenciou:

- Filho, vamos engraxar os sapatos!

Não ousaria discordar.

Seguimos pela Paulista e paramos diante do Parque Trianon, onde meia dúzia de cadeiras esperavam os sapatos dos executivos da região.

Fomos saudados como reis, já que Fernando era cliente assíduo. O engraxate começou o seu trabalho e o mestre puxou conversa:

- Como está o movimento? - perguntou.

- Ah, doutor, tá fraco, muito fraco... Aqui na Paulista não tem mais ninguém tão elegante como o senhor. Só encontro o povo da minha “vila”, todo mundo de tênis.

Pagamos os serviços prestados e Fernando, concluiu a aula:

- Tá vendo, filho, isso é pauta: a zona leste invadiu a Paulista.

A mesma Zona Leste onde Marcos Surfista batalha pelo seu sonho. Longe, muito longe de Santos, mas perto, bem perto da Paulista.

Naqueles meus 19 anos, eu não era um jornalista – não sabia pautar, entrevistar e falava com a voz trêmula. 
Mesmo assim percorri aquela avenida.

Entre o engraxate e o surfista, a pauta e rádio-escuta,  o diretor e seus repórteres, existe um caminho a seguir, alguém que nos leva pelo braço e uma caixa a carregar.

Meu caro Marcos-surfista-engraxate, se um dia ler esse texto, saiba:

Santos muda de lugar todos os dias! Hoje, pode parecer longe demais. Amanhã, poderá estar bem perto e, depois, longe novamente. Essa distância não importa!

Santos é enorme, do tamanho dos seus sonhos.... E, se acredita que pode ser um surfista, você já o é, mesmo sem saber nadar...

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Passado na mesa de bar



A idéia de mudar o passado é das maiores descobertas que fiz no presente. Tenho um apego com o tempo e a memória que só agora compreendo com mais clareza.

Muito, muito além da simples nostalgia – sentimento meio bobo e pouco funcional – o passado é uma fonte de aprendizado, inspiração e explicação para o futuro.

Teorias metafísicas a parte, tive problemas sérios com isso. Pouca gente compreende esse meu convívio com o passado e o jeito com que lido com ele. Para mim, esse cara é como um amigo de boteco.

Ele chega de leve, senta-se ao meu lado, pede mais uma e seguimos num bate-papo sem pretensão, cheio de histórias e aprendizados.

Outro dia ele se aproximou com um problema daqueles. Estava triste, o Passado... De dar dó! Coloquei o amigo no ombro e ouvi sua lamúria com atenção.

Outro sujeito, um tal de Futuro, vendo aquilo não se conformou com o tempo dispensado ao passado.
Foi  duro comigo e disse algo assim:

- Não se apegue a esse pobre coitado! Olhe pra frente!

Indignado retruquei:

- Mas, futuro, não diga isso. O Passado precisa de socorro... Não seja tão insensível.

O futuro, com sua empáfia, não arredou:

- Passado não muda, rapaz! O que foi triste continuará triste! Conheço esse cara e sei do que estou falando.

Não me deixei dobrar. Pedi uma caipirinha, mais uma gelada e o Passado foi mudando sua fisionomia. O amigo recordou os bons tempos e viu que o seu problema não era tão grave assim. Outros amigos juntaram-se a nós.

Lá estava a Saudade -  moça linda que só - e Mocidade chegou em seguida, toda faceira, com a filha, de vestido rodado: a menina Infância.

Também juntou-se a nós dona Memória, figura inteligente e elegante, apesar da idade avançada. Inteirona, estava preocupada com uma doença nova, mas diante de uma roda tão inspirada, esqueceu tudo...

Futuro continuou no balcão, carrancudo e sem graça.  Passado, aliviado das suas dores, chamou o casmurro.

- Chega mais, seu Futuro. Deixe de coisa... Venha pra cá que eu garanto: amanhã será um novo dia.

Com nariz torcido, Futuro atendeu ao convite. Quando puxou a cadeira, na porta do bar, algo lhe roubou o olhar.

Como era linda aquela princesa. Tinha cabelos dourados e um sorriso que iluminava o mundo. Não era possível desgrudar os olhos dela.

Veio na direção da nossa mesa. Eu, Passado e Futuro nos levantamos prontamente. A bela sentou-se e éramos só sorrisos. O futuro ficou definitivamente apaixonado. Passado nem lembrava qual era o problema do início da noite.

Discretamente, para que Futuro não ficasse enciumado, me aproximei e perguntei seu nome.

Com voz doce e amável, respondeu:

- Esperança!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Uma fábula de samba



Ele se vestiu de bamba naquela noite. O terno escuro, a camisa florida, o sapato lustroso e o chapéu panamá. O olhar continuava sério, mas o sorriso brilhava como jamais brilhou. O assovio deu lugar a uma voz poderosa. A valsa deixou o samba passar.

Aquela noite mágica começou em um almoço de domingo quando minha mãe exibiu um convite de festa de família. Chamou a atenção o texto explícito sobre a ausência de crianças e a exigência de bebidas (cerveja de primeira linha e destilados a gosto).

Levando em conta que o anfitrião era um primo da minha mãe, achei que a festa seria algo para outra geração. Torci o nariz, mas, enfim, sou o filho que leva dna Helen para balada.

Desde que meu pai morreu é assim: Marcão é o filho atencioso, com freqüência diária; Valter movimenta a vida dela de todo o jeito; e eu tiro a matriarca de casa para programas inusitados.

Passei a tarde em uma feijoada com pagode, na Vila Madalena. Tarde boa, cheia de planos, cervejas, torresmos e caipirinhas. A tarde virou noite e vi que a tal festa estava se aproximando.

Corri para a casa de minha mãe, tomei um banho rápido e seguimos para a Lapa, bairro que resume a história daquele pedaço da família, comandado pela matriarca, tia Lourdes, cunhada do vô João, figura ímpar, pra dizer o mínimo.

Hamilton é seu filho mais velho. Homem da noite, foi dono de bares e tem uma ligação estreita com boa parte do melhor do samba paulistano. Disso eu sabia. Mas a minha memória não alcançava a figura física do tal primo.

O local indicado era uma sobreloja. Lugar grande, equipado com freezers profissionais, churrasqueira, um terraço para fumantes e acredite, caro leitor, uma mesa de samba com microfones e instalações de fazer inveja para qualquer sambista.

Tudo por ali era um pouco kitsch com cores vivas e fortes e azulejos brilhantes. Nas paredes imagens de sambistas e fotos de amigos dividiam espaço com backlights de marcas de whisky  e cerveja.

Minha memória viajou até as casas de samba que freqüentei quando garoto. Vila,  Barracão de Zinco e Moema Samba. Gafieiras com bebida ruim e pipoca velha. O que importa? O samba era de primeira! Na Toca do Coelho, aprendi os primeiros passos com Jussara... Ahhh que saudade...

O acesso era uma escada íngreme que parecia não terminar. No topo, avistei uma figura conhecida. Não podia acreditar era.... meu avô! 

Isso mesmo, o vô João!!!  Minhas pernas tremeram por ver ali quase uma reencarnação de alguém que desapareceu cedo mas, até hoje, ocupa minhas melhores lembranças.

A questão é que vô João não estava em seus trajes normais. Era um autêntico sambista, no corpo do primo Hamilton. O austero metalúrgico interpretava ali um personagem que eu não conhecia. O boêmio, o sambista,  o galanteador...

Acho que foi até um pouco constrangedor o fato de não conseguir, por um bom tempo, desviar os olhos desse primo-avô...

Chegamos perto das 22h, mas o movimento não parou até as 4 da madrugada quando saímos. Gente entrando e saindo. Os músicos deixavam os bares e corriam para nos honrar com uma boa canja.

Qual não foi minha surpresa quando entre parentes distantes - aquela gente que só vemos em casamentos e enterros -  avisto alguém que mudou minha vida. Meu primeiro patrão! O nome é José Maria Baldez, dono de uma gráfica no Paraíso, que abriu as portas para os meus primeiros passos no jornalismo.

Editamos juntos uma revista de bairro chamada Viver Moema. Lá aprendi tudo o  que sei sobre o processo gráfico – que mudou muito, mas segue os mesmos princípios. Na empresa de José Maria conheci também o querido Luiz Henrique Romagnoli, parceiro de Serginho Leite, o imitador que marcou uma geração nos anos 80.

Maior ainda minha surpresa, quando me deparei com a viúva de Serginho que morreu cedo, muito cedo, neste ano de 2011. Fiquei emocionado. Coração de ouro esse cara! Só deixou risadas e ótimas histórias.

Mas, o ponto alto da noite, estava por vir. Alguém anunciou ao microfone que era hora do vô João cantar. Isso mesmo, meu avô sambista cantava poderosamente. Cheio de pose, esbanjando charme, lá foi ele.

Sentou-se ao microfone e cantou com voz de trovão, o melhor de João Nogueira e – diga-se – muito melhor que o original. João era meu avô, com licença, Sr. Nogueira!

Nascido no subúrbio nos melhores dias
Com votos da família de vida feliz
Andar e pilotar um pássaro de aço
Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço
Com as fardas mais bonitas desse meu país
O pai de anel no dedo e dedo na viola
Sorria e parecia mesmo ser feliz

Fiquei boquiaberto, encantado...

Mais tarde, minha mãe revelou algo que talvez explique essa alma boêmia que me habita. O pai do vô João era da noite, da música e da boemia. Os genes que me emocionam quando ouço as notas de um bom samba estavam todos lá.

E só descobri isso aos quarenta, nessa noite fábula... Voltamos à realidade e o primo-avô nos levou até o topo da escada. De lá acenou com o mesmo cuidado e carinho do velho João  que me ensinou a pescar, cuidar e, agora posso dizer, a sambar....

Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade
E orgulho de seu filho ser igual seu pai
Pois me beijaram a boca e me tornei poeta
Mas tão habituado com o adverso
Eu temo se um dia me machuca o verso
E o meu medo maior é o espelho se quebrar

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Feche os olhos!





Pronto! Pode abrir....

Lembre-se de quando era muito jovem e os sonhos mais intensos não duravam sequer uma noite.

Agora, pare o tempo e feche os olhos novamente.

Você já é um adulto planejando a vida, revendo as contas, produzindo, construindo.

Mais um piscar de olhos...

E uma nova vida invade a sua... aquela criança rouba um pedaço da sua existência e se faz a maior razão da sua trajetória... você está perto de Deus... Uma luz intensa te faz...

Fechar os olhos...

Novas verdades te tomaram de assalto e mostraram que você não sabe nada, nada... a vida parou por um instante, tudo ficou confuso....

Feche agora com força

Ao abrir, verá que aquela dor aparentemente infinita não durou mais do que um segundo, como um parto que extrai da sua alma uma nova criatura, melhor e mais forte.

Você merece: descanse os olhos com suavidade

Descubra que seu coração ainda é capaz de bater, você ainda transpira, deseja, quer e...

Seus olhos se fecham

Chega o seu grande dia.... o dia em que tudo o que viveu será passado e o que virá, futuro...

Cuidado ao fechar os olhos novamente!

Você pode se descobrir uma pessoa feliz, leve, cheia de histórias de amor e perdão.

Mas também poderá colecionar dores e rancores.

Antes de piscar, saiba que tudo se resume a um instante, como uma aula de história que fala de 400 anos em 40 minutos.

Quando Galileu nasceu, a terra ainda era quadrada... ele fechou os olhos e arredondou o mundo.

Depois de décadas em clausura, Mandela assumiu seu país e disseminou o perdão... fez em um piscar de olhos o que seus opressores não conseguiriam em dezenas de vidas...

No dia 11 de setembro, o mundo piscou os olhos e, quase como num sonho, num trailer de cinema, o próprio mundo acabou....

Piscamos novamente e dezenas de mineiros ressurgiram do centro da terra... o mundo recomeçou...

Um dia fecharemos os olhos de vez....

Será cedo? Será tarde?

Questão de escolha....

Escolhemos esse momento com os olhos bem abertos ou, simplesmente, fechamos os olhos e permitimos que qualquer momento nos escolha....


sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Como cães e gatos...



Mulheres são capazes de fazer de um tudo com um homem. Sobretudo, com um homem apaixonado.

Algumas nos fazem rir, outras nos fazem chorar. Tem aquelas que nos fazem pensar e também as que conseguem fazer-nos mudar idéias e atitudes.

Mulheres podem fazer um homem subir pelas paredes ou beijar o chão. Com elas, nos sentimos ora confiantes e fortes, ora carentes, como crianças de colo.

Difícil entender que elas não são tão poderosas assim. Apenas têm a chave para tirar dos pobres homens aquilo que escondemos nas conversas de macho, nas mentiras de menino.

Mulher é gato, homem é cachorro. Nas brigas, isso fica muito claro. Batemos forte. Elas esticam as unhas e só atacam onde dói.

Em tempos de paz também essa característica aparece. Abanamos o rabo no primeiro aceno, tolos e contentes. Elas nos olham de lado para arrancar o que querem, quando querem...
Mas algumas mulheres, só algumas, são capazes de lidar com o melhor lado do seu  homem.

O leitor XY sabe do que falo. Elas nos enxergam com se vissem com os nossos olhos a melhor imagem que temos de nós mesmos.

Nesse momento, somos os melhores do mundo!!! Verdadeiros superhomens, tamanha a força que nem sabíamos que tínhamos. Realizamos feitos inacreditáveis...

Mas, poucas, pouquíssimas mulheres, são capazes de tudo isso ao mesmo tempo.

Essas chegam para mudar sua vida, como catalisadoras de uma reação que estava com a mistura pronta, com todos os ingredientes dosados, mas seguia lenta e quase sem efeito. Uma gota e buummmm!!!! Sua vida vira ao avesso para que encontre a melhor direção a seguir.

Mesmo tão fortes e mágicas, num certo sentido, como bons gatinhos, mulheres têm uma necessidade atávica de proteção. Precisam estender as garras e encontrar um apoio, um porto seguro, nem que seja apenas para dormir recostadas, de conchinha, claro.

Bombas hormonais, esses gatos se irritam sem aviso, explodem e saem distribuindo arranhadas e mordidas sem grandes motivações.... Afe, como dói... Mas, não é sério, não é verdade. É só um momento. Bons cachorros que somos, compreendemos isso.

Em troca da energia, daqueles saltos inacreditáveis e do olhar cândido que nos diz o quanto somos incríveis, esses gatos transformadores pedem apenas que fiquemos atentos, que saibamos ouvi-los, mesmo sem entendê-los.... Afinal, cachorros não foram feitos para entender coisa alguma!

Nós, de outro lado, enterramos nossos ossos e ficamos rondando, à procura de lembranças e brinquedos que perdemos nos jardins da vida. Nos apegamos a tudo e todos sem medir intenções e gestos. Eles, os gatos, nos ensinam a viver o hoje e olhar para enxergar, com olhos de felinos, de longo alcance.

Como cães e gatos, procuramos cada qual um espelho, um oposto que nos ajude a descobrir aquilo que sozinhos dificilmente conseguiríamos.

Paradoxalmente, procuramos a reciprocidade de mamíferos que somos, carentes de calor, aconchego, uma boa toca, um prato de leite e um lugar quente e confortável para iniciar e terminar nossos dias, nossas noites, nossas vidas.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Protejam os anzóis!




Cresci em um loteamento no Guarujá, próximo à praia do Perequê. Era um lugar mágico, com ruas de terra batida, cercado de morros, bichos e plantas.

Lá, meu avô João e meu pai construíram uma casa avarandada de tijolos a vista, onde vivi o melhor da minha vida.

Nos dias de verão, vô João levantava cedo para preparar a pescaria. Passava horas montando as varas com um cuidado de fazer gosto. Linha, bóia, chumbada e anzol....

Ao final de cada vara queimava o nó de marinheiro perto do anzol com a ponta do seu cigarro (LS, se não me engano...). Depois, amarrava trapinhos de pano sobre as pontas, para evitar que as crianças machucassem as mãos, no caminho até canal.

Logo ele, que era rei em prender os dedos em portas e se cortar com facas e ferramentas, repetia aquele ritual com a cautela de um monge.

O velho João era um homem simples de poucas palavras e carinhos. Um metalúrgico que enfrentou a guerra e a depressão e deixou para as filhas uma casa pequena, com banheiro do lado de fora e um poço no quintal.

Éramos pelo menos umas 20 crianças entre primos, vizinhos e amigos – muitos amigos. Seguíamos a estrada caminhando pelo acostamento até aquela ponte onde nos aglomerávamos, em busca de manjubas fáceis de pescar.

João permanecia com sua varinha em um canto que era só dele e adorava fisgar peixes mais graúdos com os quais brigava levando a linha de um lado para o outro e sorrindo orgulhoso.
Ao final, dava a ordem para enrolar a linha no bambu.

-          Protejam os anzóis, que não quero ver ninguém machucado – dizia meu avô.

Em casa, vô Neta preparava a fritada e todos comíamos contando mentiras sobre o número de peixes pescados.

Com meu avô aprendi essa e outras lições simples de integridade e cuidado com as pessoas. Ainda amarro os meus trapinhos para evitar que a minha filha machuque as mãos.

Cuidar e proteger são verbos que perderam a vez no vocabulário contemporâneo. Vozes alteradas, palavras duras, desmesuras e grosserias de toda ordem permeiam a sociedade de uma forma desconcertante.

Ninguém cuida de ninguém. Vivemos em um mundo deselegante com pontas de anzóis espalhadas por todo lado e pessoas se transformando em armadilhas humanas, prestes a fisgar almas desprevenidas.

Meu avô tinha uma elegância toda própria. Cuidadoso e gentil, ensinou-me que o cavalheirismo é um prazer, um jeito de ser, não um capricho, tampouco um fardo.

Vez ou outra, vô João visita os meus sonhos e repete a lição!

-          Protejam os anzóis!

Obrigado, meu avô e que Deus nos proteja a todos!!!