quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Sobre plantas e lágrimas



Nunca imaginei que uma planta fosse capaz de me arrancar lágrimas. Sou do tipo que mata um cacto de sede, tal a completa incompetência de relacionamento que tenho com o reino vegetal. Posso passar horas admirando uma paisagem, naquele silêncio contemplativo e saudável, mas não me peça para regar uma muda, pelo bem desse pobre ser.

Mas aquela palmeira, bem aquela, na sua majestosa solitude, me conquistou. Era uma Macaúba, planta nativa do Brasil, que atende pelo nome científico Acrocomia aculeata.
Seu pequeno coco possui uma polpa carnuda e um tanto pegajosa, daí o nome popular chiclete de boi – uma iguaria do Cerrado.

Minha palmeira repousava em uma área gigantesca, cercada de terra seca, ao lado de dezenas de irmãs, em uma paisagem quase desértica, que remetia aos filmes de Omar Sharif, o eterno Lawrence da Arábia. Se entre as árvores houvesse um lago, aquilo bem que poderia ser um Oásis, tal o isolamento e a nobreza daqueles troncos e folhas no alto da montanha.

À sombra da Macaúba passaria horas lendo os versos de Drummond ou a prosa caipira de Guimarães Rosa. Também poderia trocar confidências com minha amada ou fazer um piquenique com a pequena Luísa, minha palmeira de folhas douradas que a cada dia surpreende a todos com seus frutos cheios de inteligência e graça.

Mas, a visão poética só persistiria se fechássemos os olhos para o desenvolvimento, deixando de lado as centenas de tratores e retroescavadeiras que por ali vagavam preparando o lugar para a mineração. Sim, a pequena família de palmeiras teria que dar espaço para uma cava de minério de ferro, matéria-prima da civilização contemporânea.

Ao lado de um bando de abnegados, estava ali para salvar aquelas plantas de um destino traçado. Tecnicamente elas seriam “suprimidas”, com todas as permissões legais para tal. Mas, de fato, aquele lugar, aquele pequeno aglomerado de palmeiras, nunca mais poderia prestar-se a um momento de sombra, ao abrigo das árvores, ao alimento dos pássaros e roedores. Aquele oásis deixaria de ser e passaria simplesmente a servir.

Paradoxalmente, o mesmo trator que poderia suprimir, agora, com uma habilidade surpreendente do seu condutor, escavava os arredores dos troncos em uma operação de resgate. A idéia era salvar aquele grupo de plantas para uma pesquisa, com o objetivo de reproduzir seus filhotes em áreas devastadas, criando outras sombras, outros oásis.

Nessa vida de repórter, cobri muitos resgates, não de plantas, mas de pessoas, não menos ameaçadas. Vi banqueiros abandonarem seus cativeiros, reféns se libertarem de bandidos, acidentados sobreviverem aos piores desastres.

Uma palavra é comum, pedra-de-toque em qualquer resgate, de planta ou gente: cuidado. A operação em si, pode acabar colocando em risco o próprio resgatado e o feitiço se virar contra o feiticeiro.

Minha macaúba foi escavada pelas beiradas e apeada do solo com o torrão de terra que recobria suas raízes. Cuidadosamente, suas folhas foram amarradas, como um rabo de cavalo verde para que nossa heroína pudesse tombar sã e salva na carreta que a transportaria para um novo momento de vida.

Olhei bem para aquela Macaúba que tombava, como olhei sempre para os olhos daqueles que testemunhei no momento em que a palavra liberdade mudava definitivamente de significado em suas vidas. Fitei a Palmeira e prometi a mim mesmo que não a esqueceria jamais...

Como os resgatados depois de meses de sequestro, a vida daquela palmeira não seria a mesma. Ela veio para o Inhotim, esse lugar mágico onde trabalho, que abriga milhares de primas daquela que eu vi deixar a sua montanha.

Nunca tive dúvidas sobre o sucesso da operação. Como tiras treinados, aqueles botânicos e jardineiros conheciam palmeiras mais do que qualquer outro aventureiro.

No Inhotim, palmeiras são amigas de todos os dias. Nos recebem com suas folhas generosas e nos encantam abrindo caminhos ou criando labirintos exóticos que nos conduzem a todos para momentos de transformação.

O que me intrigava era que ali, no topo daquela montanha, a Macaúba reinava definitiva e, entre as nossas, ela seria uma entre muitas e eu, talvez, nunca mais a reconhecesse...

Semanas se passaram e a imagem do resgate, como outros que testemunhei, ainda estava impregnada na minha retina. A memória da palmeira ainda me fazia pensar. Onde ela estaria? Como pode ter sido essa mudança? A quem mais encantaria minha macaúba?

Visitando uma galeria em obras, a maior do Inhotim por enquanto, avistei algo familiar. Não acreditei que seria capaz de distingui-la mas, não havia dúvidas, era ela.

Minha palmeira resgatada estava ali, ainda mais linda, eternizando sua majestade ao lado de obras não menos eternas. Quis o destino que seu lugar fosse destacado e ali estabelecido.

Uma alegria inexplicável tomou-me de assalto! A visão da Macaúba salva, verde, linda e soberana, encheu meu peito de emoção e orgulho.

Sim, poderei ler meus livros, declarar meus amores e papear tranquilo sob suas folhas enquanto ambos existirmos. Ela estará sempre lá, nos abençoando com suas sombras. Quero passar por ela, daqui a 10 ou 20 anos  e confidenciar  em pensamento a memória da montanha, do dia do seu resgate.

Sempre que retorno ao local, alimento meu coração com a força daquele ser que soube mudar sem perder a grandeza, tamanha a generosidade da sua simples existência.

De fato, nunca imaginei que uma planta fosse capaz de me arrancar lágrimas....