Quando entrei pela primeira vez naquela sala, descobri um cheiro que iria fazer parte do meu cotidiano e da minha vida, daquele momento em diante. O odor unia nuances que, de um lado, resgatavam parte do meu passado e, de outro, revelavam parcela significativa do meu futuro.
Era um cheiro de coisa guardada, fechada, velha e escondida. Não era necessariamente ruim como pode parecer. Na verdade, o cheiro lembrava – e muito – uma casa no litoral onde passei a melhor parte da infância. No início do verão, quando meu pai destravava as portas, o mesmo cheiro escapava por todos os lados. Até o final da temporada, um nariz mais atento ainda poderia captar o que, para mim, tinha aroma de alegria e aventura.
Creio que a semelhança entre a sala e a casa deve-se às mesas de madeira de lei com placa de patrimônio dos Diários Associados de Assis Chateaubriant, presentes na primeira. Era a mesma madeira do forro da casa. Firmes, escuras e bem envernizadas, as mesas escondiam sob seus tampos velhas e charmosas máquinas de escrever, invariavelmente empoeiradas.
O forro também tinha seus segredos. Lembro de uma gata angorá que resolveu parir no calor daquele espaço entre as telhas e a madeira. Passamos boas noites sem conseguir dormir com o miado molenga dos filhotes esfomeados. Corujas também teimavam em construir ninhos por lá.
A sala no quarto andar do prédio austero da rua Brigadeiro Tobias também tinha um morador. Era Heitor Gonçalves, um velho repórter que mantinha tudo em ordem em troca da generosidade de amigos de imprensa e de polícia. Vez ou outra informava uma revista de fofocas sobre casos envolvendo famosos.
Ultrapassado pela vida, pelo mercado, pela tecnologia e pelo descaso das redações com os velhos profissionais, Heitor não conseguia viver longe daquelas mesas, daquelas máquinas e daquele cheiro. Por ali ficava tomando de empréstimo a emoção dos mais moços, como eu. Era capaz de vibrar com nossas conquistas mais tolas. Como um avô, a cada passagem do presente, resgatava velhas histórias do passado.
No litoral, meu avô João, um velho metalúrgico, também funcionava como uma espécie de porto seguro. Para a pesca, ele preparava as varas, cuidadosamente, ocultando anzóis entre trapinhos de pano para evitar acidentes. Na praia, ele ficava sempre atento a todos os movimentos da molecada. No jogo de truco, entre os mais velhos, tinha a voz mais potente.
Mesmo com histórias tão diferentes, o operário e o jornalista falavam com o mesmo orgulho sobre os bons tempos. As lembranças não tinham relação com a recompensa, nos dois casos vergonhosamente desproporcional ao esforço. Tamanho orgulho era a única forma de dar sentido à vida e justificar o passado.
Difícil afirmar se morreram felizes ou amargurados. Meu avô, entretanto, deixou a vida cercado de amigos, familiares, filhos e netos. O bom Heitor foi encontrado morto em um velho cubículo do centrão de São Paulo. Na época, até o local do enterro era uma dúvida.
O destino de Heitor sempre me assustou. Assusta até hoje. A solidão da velha sala matou o jornalista. Mesmo assim, sem aquelas memórias, aquele cheiro, sua vida perderia o significado, muito antes do seu corpo. Às vezes, a escolha por uma morte solitária é o preço do sentido de uma vida.
Heitor não foi o único que teve de escolher. Dizem os mais antigos que um preso, algemado à cadeira, se jogou no vão do prédio preferindo a morte à tortura. O próprio Heitor teria presenciado o suicídio, vendo pela janela o corpo despencar.
Ironicamente, a solidão do velho Heitor, de fato, nunca existiu. O setor de inteligência da Polícia Civil – se é que isso existiu algum dia – sempre vigiou pateticamente tudo o que acontecia por lá. O telefone era grampeado e as janelas nunca tiveram cortinas.
Uma das diversões dos mais jovens era xingar o pobre coitado que fazia o grampo. Este sim era um solitário, obrigado a passar o dia espionando alguém com quem poderia simplesmente conversar para arrancar-lhe os maiores segredos.
Talvez o final inglório de Heitor Gonçalves seja a maior razão pela qual resolvi dar vida mais longa às minhas experiências profissionais. Uma forma de exorcizar a solidão perpetuando a herança de uma vida sem esperar resposta.
Se nada mais restou do velho Heitor, daquela sala, daquelas mesas, da casa no litoral e da pescaria com meu avô, que pelo menos o cheiro permaneça no coração e na memória. Cheiro de vida intensa, repleta, vivida em plenitude. Cheiro de emoção, de primeira vez.
Registrar esta trajetória é manter no ar a idéia que é possível tentar, inventar, fazer, viver e sonhar.
É preservar o verdadeiro cheiro de jornalismo...