segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Cheiro de jornalismo


Quando entrei pela primeira vez naquela sala, descobri um cheiro que iria fazer parte do meu cotidiano e da minha vida, daquele momento em diante.  O odor unia nuances que, de um lado, resgatavam parte do meu passado e, de outro, revelavam parcela significativa do meu futuro.

Era um cheiro de coisa guardada, fechada, velha e escondida. Não era necessariamente ruim como pode parecer. Na verdade, o cheiro lembrava – e muito – uma casa no litoral onde passei a melhor parte da infância. No início do verão, quando meu pai destravava as portas, o mesmo cheiro escapava por todos os lados. Até o final da temporada, um nariz mais atento ainda poderia captar o que, para mim, tinha aroma de alegria e aventura.

Creio que a semelhança entre a sala e a casa deve-se às mesas de madeira de lei com placa de patrimônio dos Diários Associados de Assis Chateaubriant, presentes na primeira. Era a mesma madeira do forro da casa. Firmes, escuras e bem envernizadas, as mesas escondiam sob seus tampos velhas e charmosas máquinas de escrever, invariavelmente empoeiradas.

O forro também tinha seus segredos. Lembro de uma gata angorá que resolveu parir no calor daquele espaço entre as telhas e a madeira. Passamos boas noites sem conseguir dormir com o miado molenga dos filhotes esfomeados. Corujas também teimavam em construir ninhos por lá.

A sala no quarto andar do prédio austero da rua Brigadeiro Tobias também tinha um morador. Era Heitor Gonçalves, um velho repórter que mantinha tudo em ordem em troca da generosidade de amigos de imprensa e de polícia. Vez ou outra informava uma revista de fofocas sobre casos envolvendo famosos.

Ultrapassado pela vida, pelo mercado, pela tecnologia e pelo descaso das redações com os velhos profissionais, Heitor não conseguia viver longe daquelas mesas, daquelas máquinas e daquele cheiro. Por ali ficava tomando de empréstimo a emoção dos mais moços, como eu. Era capaz de vibrar com nossas conquistas mais tolas. Como um avô, a cada passagem do presente, resgatava velhas histórias do passado.

No litoral, meu avô João, um velho metalúrgico, também funcionava como uma espécie de porto seguro. Para a pesca, ele preparava as varas, cuidadosamente, ocultando anzóis entre trapinhos de pano para evitar acidentes. Na praia, ele ficava sempre atento a todos os movimentos da molecada. No jogo de truco, entre os mais velhos, tinha a voz mais potente.
Mesmo com histórias tão diferentes, o operário e o jornalista falavam com o mesmo orgulho sobre os bons tempos. As lembranças não tinham relação com a recompensa, nos dois casos vergonhosamente desproporcional ao esforço. Tamanho orgulho era a única forma de dar sentido à vida e justificar o passado.

Difícil afirmar se morreram felizes ou amargurados. Meu avô, entretanto, deixou a vida cercado de amigos, familiares, filhos e netos. O bom Heitor foi encontrado morto em um velho cubículo do centrão de São Paulo.  Na época, até o local do enterro era uma dúvida.
O destino de Heitor sempre me assustou. Assusta até hoje. A solidão da velha sala matou o jornalista. Mesmo assim, sem aquelas memórias, aquele cheiro, sua vida perderia o significado, muito antes do seu corpo. Às vezes, a escolha por uma morte solitária é o preço do sentido de uma vida.

Heitor não foi o único que teve de escolher.  Dizem os mais antigos que um preso, algemado à cadeira, se jogou no vão do prédio preferindo a morte à tortura.  O próprio Heitor teria presenciado o suicídio, vendo pela janela o corpo despencar.

Ironicamente, a solidão do velho Heitor, de fato, nunca existiu. O setor de inteligência da Polícia Civil – se é que isso existiu algum dia – sempre vigiou pateticamente tudo o que acontecia por lá. O telefone era grampeado e as janelas nunca tiveram cortinas.

Uma das diversões dos mais jovens era xingar o pobre coitado que fazia o grampo. Este sim era um solitário, obrigado a passar o dia espionando alguém com quem poderia simplesmente conversar para arrancar-lhe os maiores segredos.

Talvez o final inglório de Heitor Gonçalves seja a maior razão pela qual resolvi dar vida mais longa às minhas experiências profissionais. Uma forma de exorcizar a solidão perpetuando a herança de uma vida sem esperar resposta.

Se nada mais restou do velho Heitor, daquela sala, daquelas mesas, da casa no litoral e da pescaria com meu avô, que pelo menos o cheiro permaneça no coração e na memória.  Cheiro de vida intensa, repleta, vivida em plenitude. Cheiro de emoção, de primeira vez.

Registrar esta trajetória é manter no ar a idéia que é possível tentar, inventar, fazer, viver e sonhar.

É preservar o verdadeiro cheiro de jornalismo...


Lampião de gás / Lampião de gás / Quanta saudade / Você me traz





Essa fonte de luz e energia iluminou a cidade de São Paulo até 1937. Gente como a poeta Zica Bergami traduziu em versos a saudade de uma certa “luzinha verde azulada” que iluminava sua mocidade dos anos 1910. A energia era produto da queima de carvão mineral. Para iluminar São Paulo, bastavam pouco menos de 2 mil postes, que substituíram as lamparinas de azeite do século XIX.
                     

A música eternizada na voz de Inesita Barroso lembra “do bonde aberto, do carvoeiro
e do vossoureiro, com seu pregão”. Veículos e pessoas que desapareceram há décadas. Um mundo, com outro compasso, outra energia.

Afinal, quando os lampiões de gás deixaram a maior metrópole brasileira éramos menos de 40 milhões de pessoas. Um país exótico, uma promessa.... O mundo não era tão diferente. Menos de 2 bilhões de habitantes viviam a expectativa da segunda grande guerra, quando o bem e o mal ainda escolhiam lados.
Neste ano, seremos 7 bilhões de pessoas no planeta. Isso mesmo! A humanidade atingirá essa marca. Sete bilhões de bocas para comer, 14 bilhões de pulmões para respirar  e, para cada pessoa, um conjunto de dezenas de objetos que só funcionam às custas de uma palavra, um conceito, algo invisível que nos cerca a todos, não pede licença e, principalmente, não pode acabar... a energia!!!!
Televisores, geladeiras, microondas, DVDs, computadores, celulares, I’pods (fones, pads e outras palavrinhas encantadoras  inventadas por Stive Jobs...), máquinas de lavar, secar, passar e até carros.... Tudo, em algum momento, freqüenta uma tomada que recebe a vibração invisível que alimenta o mundo. Nada, rigorosamente nada disso, fazia parte da poesia e da juventude da nostálgica Zica.
Quando tudo apagava, ela simplesmente fechava a janela e dormia, aguardando o sol que até hoje brilha, inequivocamente, toda a manhã. Nós nos desesperamos com o apagão ou, simplesmente, o risco de escassez que ele aponta. Trocamos poesia por eletricidade. Agora pagamos o preço.
A demanda projetada de energia no mundo aumentará 1,7% ao ano, até 2030, quando alcançará 15,3 bilhões de toneladas equivalentes de petróleo (TEP) anuais, de acordo com o cenário base traçado pelo Instituto Internacional de Economia (Mussa).
A matriz energética mundial tem participação total de 80% de fontes de carbono fóssil, sendo 36% de petróleo, 23% de carvão e 21% de gás natural. O Brasil se destaca entre as economias industrializadas pela elevada participação das fontes renováveis em sua matriz energética.
Isso se explica por alguns privilégios da natureza, como uma bacia hidrográfica, fundamental a produção de eletricidade (14%), e o fato de ser o maior país tropical do mundo, um diferencial positivo para a produção de energia de biomassa (23%).
Zica Bergami não sabia disso, apenas rimava sua saudade com graça e delicadeza. Rimas bem mais ricas que apagão e geração, por exemplo. Isso mesmo:  agora não adianta produzir, também é preciso distribuir a tal da energia. Aí mora o problema. A população galopa enquanto a energia, engatinha. A solução rima com poesia. A palavra é economia.
 No mundo de dona Zica os recursos estavam todos ali, ao alcance de um lampião. Aos poucos, o nosso mundo ganhará novos lampiões. Limpos, sem fumaça e fuligem. O nome é pouco poético:  Light Emitting Diode ou, simplesmente, LED.
Essa é a palavra que, silenciosamente,  ocupa os espaços das necessidades que o homem contemporâneo construiu para iluminar a própria vida.
Esse tipo de iluminação é  o terceiro estágio na evolução da lâmpada elétrica. O primeiro, representado pela lâmpada incandescente que substituiu os lampiões, para a tristeza de dona Zica.  A segunda fase, com o uso das lâmpadas fluorescentes (que geram luz a partir de uma mistura de gases), representou economia, mas não conseguiu substituir sua antecessora em todas as aplicações.
A tecnologia do LED é bem diferente. A lâmpada é fabricada com material semicondutor semelhante ao usado nos chips de computador. Quando percorrido por uma corrente elétrica, emite luz. Enquanto uma lâmpada comum tem vida útil de 1.000 horas e uma fluorescente de 10.000 horas, a LED rende entre 20.000 e 100.000 horas de uso ininterrupto.
Nossos lampiões modernos funcionarão assim: 10 anos sem parar, sem apagar. “Queremos preparar as pessoas para esse novo momento, promovendo uma migração tecnológica com critério e informação”, afirma Mônica Ferro, à frente da Wall Lamps, empresa brasileira na vanguarda dos projetos de iluminação no Brasil.
Segundo Mônica, viveremos algo parecido com a chegada dos microcomputadores ou telefones celulares. Um caminho sem volta e uma tecnologia que começa com custos mais altos e, aos poucos, toma conta do cotidiano das pessoas.
Mesmo se todos nós conseguirmos apagar as luzes e dormir tranqüilos, como a poeta que tinha saudades do velho lampião, talvez, em um futuro próximo, consigamos novamente produzir versos e cantar nossa saudade. 

Saudades de telefones pretos e geladeiras brancas; de caminhar com calma; de namorar no portão; da matraca que anunciava o quebra-queixo; da buzina do algodão doce; de ouvir "muito obrigado", "por favor" e "com licença"; de um tempo mais doce; de um compasso mais lento... de mais poesia e outra energia...

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Memórias....



A minha memória é uma caixa de imagens. Os fatos, organizados sistematicamente, vão perdendo a seqüência e a conexão, ao passo em que o cérebro envelhece... Restam as imagens, que se tornam símbolos e ganham significados próprios e perenes...
A primeira e mais distante imagem que tenho dele remonta aos meus quatro ou cinco anos. Ele chegava em casa, após o trabalho e eu saia correndo para me jogar em seu colo. No caminho, um grito de guerra: “pô, pô, pô, pô, pô, pô, pô..... paiiiiiiii”. Quase inevitavelmente, ele dava dois passos para trás e, até hoje, não sei como nunca levei o velho ao chão.
Aquela era uma forma de festejar o encontro ou o reencontro diário. Meninos, como cachorros, se emocionam ao rever, mesmo poucas horas depois de ver... e festejam, comemoram...
Outra brincadeira deliciosa, que ele repetiu com minha filha e sobrinhos, era a de botinha. Agarrado à sua perna, seguia pela casa, como se fosse uma bota... Um peso e tanto!
Também lembro-me bem quando ele me levava para a escola, a bordo de carros grandes e lindos (um dodge, um landau, um galaxy....). Seguíamos conversando sobre a vida... Nunca me tratou como criança, com aquela atenção de mentira... Realmente, estava atento a tudo o que eu dizia e foi assim até a nossa despedida.
Também lembro do pai cheio de dengos, um chamego para cada um que ele amava... O pão de queijo da Larissa, o café da Luciana, a escolinha da Luísa, os desenhos do Tiago. A molecada disputava aquele colo com direito a brigas e discussões.
Outra lembrança boa era do meu velho na minha casa. “Como é gostoso aqui, filhão...” , ele dizia. Sentia-se realmente feliz no meu canto. Menos pela casa, talvez, mais pela tranqüilidade de ver que o filho mais novo construiu seu pedaço de chão.
Na minha casa, passou um natal lindo ao meu lado. Na véspera, fomos ao mercadão, para mais uma imagem gostosa. Meu pai caminhava pelos corredores do mercado e todos ali o tratavam pelo apelido que ganhara quando comercializava carne naquelas bancas. Era o ‘pé de chumbo’ – alcunha típica para aqueles que dirigiam sem calcular muito bem o momento de frear...
Meu pai era um sujeito engraçado e cheio de manias. Acreditava que tangerina dava gripe e que pasta de dente era bom para assentar fios rebeldes do cabelo. Acreditava até a página três, porque acabava rindo de tudo isso...
Recordo-me bem, muito bem do seu sorriso. Mas não tenho registros do meu pai chorando... Tristeza ou alegria de fazer chorar eram sentimentos que ele guardava longe dos meus olhos.
Tenho outras lembranças duras, dos últimos dias da sua vida. Foram poucos e rápidos, como ele sempre quis. Mas vivemos cada um desses dias, dessas horas, como se fossem anos. E, mesmo sofrendo, ele não perdeu a ternura...
Após uma sessão de acupuntura, disse ao terapeuta que dias antes de estar ali carregava sacos de farinha nas costas. Pobre pai... Havia mais de 50 anos que ele não sabia o que era um saco de farinha, exceção àqueles que compramos no supermercado. Mas, não há maior surpresa que o envelhecimento, como diz Philip Root.
Também recordo-me da expressão de medo que tomou o seu rosto quando a médica descuidada falou sobre o aneurisma que o levaria a morte. Meu pai tinha um verdadeiro pavor diante do sofrimento....
Me virei em oito naqueles dias, mas evitei ficar ao seu lado... Queria que tudo ficasse bem e pudéssemos fazer outro churrasco para rir daqueles momentos.
Na verdade, não queria aquela lembrança, aquela imagem do pai doente. Mas, duas últimas cenas ainda marcariam nossa história.
A primeira mistura o bom e o ruim desses dias. Era, meu pai entrando na ambulância com cara de menino que tomava ônibus pela primeira vez. Ele realmente se divertiu no trajeto, como conta minha mãe, que o acompanhou. Eu não sabia mas, naquele momento, presenciava seu último sorriso.
Alimentamos esperanças tolas em uma cirurgia que nunca teria um bom final...
Depois, o filme ganha um corte brusco, os médicos nos deixando claro que não conseguiram nada e talvez, mais tarde, partiriam para uma tentativa dura e invasiva... Ele não queria isso e se deixou partir com suavidade, creio eu...
Voltei ao hospital com alguma esperança em vê-lo vivo, mas foi uma maca que vi deixando a UTI, com um corpo coberto. O médico gritou mandando que os enfermeiros retornassem e me abraçou dando a notícia.
Entre o sorriso da ambulância e aquela maca fria e sem piedade, permanecem essas duas imagens em meu álbum junto com tantas outras, lindas, doces e saudáveis...
De alguma forma, elas me dizem que existe alegria e diversão até nas horas mais críticas. Também me ensinam que, por vezes, a vida é dura e implacável para que aceitemos o inaceitável....
Sei que o Valtão está bem e sinto a presença dele nos bons momentos da minha vida, da minha filha e de toda a minha família. Procuro recuperar, na minha caixinha particular, as melhores fotos e filmes.
Mas, vez ou outra, é inevitável resgatar as cenas mais duras e emprestar novos significados aos velhos símbolos...