quarta-feira, 2 de maio de 2018

Eu, a militante e o prédio de vidro



“Sempre achei esse prédio esquisito. Passava diariamente por ele. Tudo fechado, um cheiro horrível. Conheci muita gente de lá. O dono do hotel ao lado cansou de reclamar. O prédio tava torto, moço. Ele mandou carta pra todo mundo e ninguém fez nada...”

O desabafo que não pediu licença veio uma senhora de cabelos grisalhos, com os olhos cheios d’água diante do monte de entulho e fumaça em que se transformou o que os moradores dos prédios invadidos do centro de São Paulo chamavam de “prédio de vidro”.

Na madrugada do primeiro de maio de 2018, muita coisa pegou fogo junto com aquele edifício. Por mais precário e “esquisito” que fosse o lugar, ele carregava memórias, momentos e histórias de vida. Parte da minha história também desabou.

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No dia 11 de maio de 1994, pela primeira vez desde o final da ditadura militar, as tropas do Exército brasileiro tomavam as ruas do centro da Pauliceia cerrando trincheiras com carros blindados, rifles e lança foguetes.
O objetivo: invadir, dominar e conquistar o prédio da Superintendência da Polícia Federal na rua Antônio de Godói.

Os agentes federais iniciaram naquele ano o maior movimento grevista da história da instituição. O Brasil da moeda forte estava ávido por viajar para o exterior e gastar dólares em paridade com a  URV (unidade monetária de transição que antecedeu o Real).

Pouco importava para a classe média – hipócrita como sempre – que a paralisação dos policiais pudesse afetar as funções vitais daquele órgão do Executivo Federal. O problema era mesmo a emissão de passaportes. Itamar Franco não teve dúvidas e decretou a intervenção.

A noite foi tensa. Afinal, Exército e policiais estavam armados até os dentes e, se alguém exibisse algum sinal de reação, o final daquele circo poderia ser sangrento. Os jovens repórteres, como eu, estavam evidentemente tensos.
Mais tarde perceberíamos que os mais amedrontados eram aqueles pobres soldados de verde, “quase todos perdidos de armas na mão”, que jamais cogitaram viver pela Pátria ou mesmo lutar e morrer com ou sem razão.

No prédio ao lado, no Sindicato dos agentes, parte do equilíbrio mantido se deveu à liderança do presidente Lauro Trapp, por uma feliz coincidência um amigo de família e, a partir de agora, minha fonte nessa longa cobertura. Trapp, um democrata de verdade!

Um doce maluquinho autointitulado agente comunitário especial Esteves furava o bloqueio militar e trazia notícias engraçadas do prédio de vidro, simulando no seu delírio o papel de Relações Públicas dos policiais.

Me apoiei na figura mais do que competente do rei do jornalismo na madrugada, Carlos Maglio. O repórter da CBN conhecia como poucos a noite paulistana e seus segredos. Tratava (e era tratado) pelo nome pelos personagens mais soturnos do centro. 

Outra figura marcante era o porta-voz do Comando Militar do Sudeste, um oficial com nome improvável: Miguel Carlos Tatton Ferreira. Isso mesmo, coronel Tatton.

A mesa ladeada por duas bandeiras, uma brasileira e outra soviética, era o seu modo de demonstrar um certo espírito democrático mesmo como porta-voz de um momento tão ridiculamente autoritário.

Maglio não resistiu ao nome engraçado do coronel, e com um tapa nas costas do sujeito, saudou:

 - Tatton sua velha raposa....

No prédio de vidro passei meses acompanhando os detalhes das negociações entre  Governo agentes em busca da isonomia salarial com os policiais civis de Brasília, à época os mais bem pagos do Brasil.

Em um final de tarde, da janela do Sindicato observei os militares marchando em retirada. O major no comando acenou em despedida. Cheguei a noticiar o final da intervenção para a revolta da chefia de reportagem da rádio. Brasília não confirmava a notícia.

Meia hora depois, outra tropa invadiu novamente o prédio e a intervenção durou mais alguns dias. No jargão jornalístico, cometi uma “barrigada”. O que teria acontecido era simplesmente uma troca de guarda. Ninguém explicou, no entanto, porque trocar a guarda naquele horário, perto das 18h.

Mais tarde, o presidente da Federação dos agentes, Francisco Garisto, denunciou o que teria sido um momento de resistência e desobediência dos militares que não teriam concordado com a ordem presidencial de deixar a PF. Vivemos uma tentativa de golpe, segundo o agente...

Cultivar fontes, circular em lados distintos em um momento de confronto, lidar com informações divergentes durante uma greve, a euforia de um ano eleitoral e o plano econômico comemorado pela sociedade; esse conjunto caótico de fatos, fez de um jornalista iniciante um repórter.

Daquelas janelas da Antônio de Godói aprendi a enxergar a minha cidade e o meu país com maturidade e discernimento. Os tiras, soldados e delegados me ensinaram que ser e parecer eram coisas diferentes.

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O agora professor de jornalismo e a militante sem teto estavam ali abraçados diante dos escombros do prédio de vidro que cobriam a rua Antonio de Godói. Não deu pra segurar o choro. Não importa o significado do que estava no chão, pessoas viram parte da sua história soterrada.

Décadas depois, a mesma irresponsabilidade daquela intervenção se repete nas favelas cariocas. O mesmo descaso com o direito dos agentes dá lugar à invisibilidade de centenas de brasileiros que procuram um lugar pra viver.

Os Sindicatos, em pleno primeiro de maio, assistem direitos vilipendiados por um governo criminoso. O equilíbrio do velho Trapp, com a experiência da luta, dá lugar ao desespero daquela gente sem teto, e agora sem mais nada.

Firmando bem os olhos, enquanto o choro permitia, eu seria capaz de ver o agente Esteves correndo para levar perguntas e trazer notícias para a imprensa de plantão. Tentava retomar os rostos, mas a militante inconformada e em prantos, mantinha em bom tom sua indignação.

Nos despedimos com um forte abraço. Eu segui para a Cruz Vermelha, na tentativa de contribuir de algum modo para aliviar o sofrimento dos sobreviventes. Ela se juntou a eles, com palavras de carinho e consolo.

O ano de 2018 definitivamente chegou para que pensemos sobre o que restou dos nossos sonhos e esperanças. Para questionar o quanto, de fato, somos uma sociedade ou um aglomerado de grupos raivosos e preconceituosos que já criminalizam as vítimas desse desastre.

É preciso muita indignação e coragem para manter a esperança!!!!