A droga contemporânea
mais poderosa é a ideia que vivemos num mundo fácil de resolver
Jamais senti-me tão isolado em pensamentos e opiniões. Chega
a ser perturbador, por um lado mas, por outro, faz pensar, refletir. O fato é
que nos tornamos criaturas discursivas e somos cobrados por posições, antes
irrelevantes para nós mesmos e o mundo. Cobrados por coerência, escolha,
direção. É um mundo cheio de palavras e vazio de ações. Cheio de certezas e
vazio de bons questionamentos. Adoraria escolher lados, explicar o mundo em um
parágrafo e estar certo sobre as coisas. Mas, nem sempre o caminho simples é
aquele que leva a algum lugar.
Quando um Donald Trump torna-se presidente eleito da Nação
que lidera o mundo ocidental, o bloco ao qual pertencemos, contrariando
previsões e institutos de pesquisa, analistas e especialistas de toda ordem,
resta a pergunta: por que? Como poderia ser esse o mesmo País com uma
democracia inabalável sustentada por uma Constituição centenária; o cenário de
avanços tecnológicos fantásticos; a Pátria que elegeu Obama por duas vezes????
Aí vem a resposta fácil: Nos EUA há alguns milhões de
fascistas que pensam e agem como o próprio presidente eleito. Há uma maioria
homofóbica, burra e mentirosa. Um contingente com mais de 40 milhões de
criaturas preconceituosas que gostariam de mandar para o inferno o primeiro
imigrante ou muçulmano que cruzar o seu caminho.
Quem dera fosse tão simples explicar o mundo dessa forma.
Mas, não é. Não faz sentido que assim seja. Essa corrida conservadora, essa
guinada à insanidade, tem raízes bem mais profundas do que o caminho simplista
retratado anteriormente. Não fosse assim, o mesmo fenômeno não teria versões
semelhantes em outras partes do mundo, em um processo de conservadorismo galopante.
A ideia de recolher as velas, olhar para o próprio umbigo,
se fechar em copas (como diriam os antigos) é sempre retomada quando as
perguntas ficam sem respostas. Quando as teorias deixam de solucionar problemas
e transformam-se em mera retórica, o pobre bicho homem se apega ao que tem e
lhe parece sólido – seus princípios, seu chão, sua referência maior.
Muita coisa deixou de fazer sentido nos últimos anos. Como
disse Salman Rushdie - o poeta maldito do Islã - de 11 de setembro de 2001 para
cá, o mundo trocou definitivamente a liberdade por segurança como valor maior.
Em outras palavras, sentir-se longe de ameaças, bombas e aviões despencando do
céu, é mais importante que discutir as razões e causas profundas que nos
colocam nesse estado de medo.
Ao mesmo tempo, passamos a conviver em rede global,
conectados por um tijolinho tolo, um grilo falante que não nos deixa em paz, ao
alcance de toda a sorte de ignorância. Ao medo, respondemos rápido, com uma
injeção lisérgica para provocar aquele estado de conforto da alma e satisfação
dos instintos animais e básicos de defesa da espécie e do território.
Assaltantes surgem tombando em meio aos carros nas redes
sociais com um mundo inteiro comemorando no silêncio discursivo do touch screen.
Matar é eliminar o problema rápido. E o nosso Bolsonaro galopa em popularidade
justificando a violência, defendendo torturadores, negando a história e
reescrevendo tudo com tintas truculentas e preconceituosas.
Para os bandidos do colarinho branco, a receita é cana.
Vê-los atrás das grades é a vingança social que tanto esperamos depois de anos
de violência contra as contas públicas. Não importa o quanto vamos recuperar do
que foi roubado, desde que eles sejam presos, ainda que só por alguns anos. A
imagem das algemas e do camburão são um conforto, um alento.
E tem a tal da delação. De novo, não importa o que seja
delatado nem como. Também não é necessário que a caguetagem se mantenha em
sigilo até a sua comprovação. Vale abrir a torneira e expor, escancarar, antes
que eles escapem!!!!! Vamos dançar sobre o aniquilamento da imagem alheia como
canibais que comemoram a prisão do colonizador – agora refeição para a tribo. São
todos ladrões mesmo... Que queimem lentamente sob o nosso canto de guerra.
Quando vejo tanta delação premiada fico pensando como dizer
a uma criança que delatar não é bacana. Não é bonito. Como explicar que, se o
guri for pego colando, deve sofrer as consequências do seu malfeito sem
entregar o colega? Que lealdade é um valor importante? Que o delator é o pior
dos bandidos porque entrega seus comparsas em benefício próprio?
Aí tentamos explicar olhando para antigos líderes. À direita
dizem que estamos limpando o que restou de um projeto criminoso de poder. À
esquerda garantem que vivemos um tempo de exceção, de sequestro da democracia,
um golpe sem tanques. E ambos, sem inocentes nem algozes, pipocam entre
delatores e delatados. Ambos disseram que tinham a cura e se revelaram, em boa
medida, a própria doença.
Cada qual ao seu tempo, ao seu jeito, com o seu discurso,
direita e esquerda, no Brasil e no mundo, falharam.
Tropeçaram na tal da
globalização que só fez descentralizar a miséria e concentrar a riqueza. Aí,
quando os porões sacodem a poeira, quando a senzala balança as correntes, todos
correm amedrontados.
E quanto maior o medo, mais simples as respostas. Tudo culpa
dos black blocs, dos adolescentes que ocupam escolas, dos vagabundos que não
querem trabalhar e ficam fazendo manifestações e greves. Ou, se preferir uma
resposta à esquerda, tudo já era previsto com esse governo ilegítimo e seus
comparsas. Agora eles vão suprimir direitos, esmagar investimentos sociais e
aposentadorias.
Ok, ok. Mas qual seria mesmo o caminho? Nenhum dos lados tem
a resposta. A direita enfiou o mundo em uma lógica liberal que destruiu o
planeta e aprofundou diferenças. A esquerda faliu com seus ministérios da
verdade, mamando em tetas que sempre jurou combater. Ambos viraram as costas
para a educação. De mãos dadas, ainda que com discursos antagônicos, querem
para si um pedaço do Estado, com seus cargos e vazamentos.
A França, próxima fronteira das respostas prontas, é um bom
exemplo. Ninguém merece a violência. Nem franceses, nem muçulmanos. Mas a
solução é simples – basta eleger uma versão Trump e erguer um muro.
A inteligência foi sistematicamente abandonada pelas
ideologias. Posta de lado em nome da truculência. A droga contemporânea mais
poderosa é a ideia que vivemos num mundo fácil de resolver. Que o homem pode
preterir a liberdade em nome de uma segurança mentirosa, de sistemas políticos
de fachada e da representatividade esculhambada.
Se os americanos elegeram Trump, aqui consagramos o Branco
para prefeito e o Nulo para vice com uma grande Câmara de ausentes, já em
primeiro turno. O trocadilho confere. Brancos pela não-escolha, mas também
brancos os que restaram, com seus valores da Casa Grande (vide Crivella). Nulo
pelo não das urnas mas também nulo pela preguiça de pensar, raciocinar e
escolher. E ausentes todos, mais preocupados com as Olimpíadas.
A complexidade é chata e sonolenta, mas necessária. É
preciso pensar no mundo de 2030 quando, segundo a ONU, mais de 90% da população
mundial viverá em cidades, amontoadas em concreto armado.
É preciso pensar em tolerância, diálogo e convivência de
verdade. Em um jeito de entender e lidar com a organização horizontal, em rede,
sem a hierarquia tradicional, que possibilita – ao mesmo tempo – a existência
do Estado Islâmico, o junho de 2013 e a Primavera Árabe. Se queremos fazer
política é assim que será ou, simplesmente, não será!
Temos que nos preparar para uma sociedade que envelhece mais
e mais e, cada vez mais cedo, se vê perdida nas angústias de uma vida sem
direção nem propósito. Pensar em ter tempo para usufruir do que construímos e
não viver para construir mais e mais.... Isso, antes que o Alzheimer nos mande
esquecer tudo!
Hora de parar e pensar em um sistema educacional longe das
“grades” curriculares que aprisionam o vazio, em carteiras que organizam a
burrice, nos cardumes de peixinhos felizes nadando para boca dos tubarões –
salve Brecht.
Pensar no futuro é pensar na água e no tempo como grandes ativos.
É entender a mobilidade como um bem em risco e a própria cidade como a maior
expressão da política, uma vez que tende a adensar problemas e pessoas em igual
proporção.
Quero discutir o que podemos fazer por uma economia
colaborativa e menos competitiva. Livre, sempre, mas que não tenha como meta
comum o acúmulo que enterrou o mundo em nome de meia dúzia de fantasmas que
chamamos de “investidores”.
Quero entender a razão de milhões de pessoas praticarem o
suicídio coletivo com o crack. Quero estudar como lidar com os grandes fluxos
migratórios sem fechar fronteiras. Quero saber como deter o aquecimento global.
Quero mergulhar em problemas com a alma e não o com esse torcicolo ideológico
antiquado.
Mas, caro leitor, se você prefere respostas prontas, siga em
frente. Escolha seu partido, seu apelido (coxinha, petralha...), vote no seu
Trump e seja feliz. Só não abra o olho!!! Permaneça na Matrix!!! Assim como
está terá sempre o conforto do antagonista, do suposto contrário, como ameaça
maior que a sua própria ignorância!!!