sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Era uma vez... (*)



Em um reino muito, muito distante havia um boneco de pau chamado Pinóquio. Seu sonho era virar um menino de verdade.

Boneco de periferia, viu seus amiguinhos humanos crescerem. Pinóquio ficava pensando como seria bom sentir frio, calor, o sabor das frutas e o cheiro da relva.

Aos 18 anos, o melhor amigo de Pinóquio financiou uma moto. Começou a entregar pizzas e, nas horas vagas, fazer uma “correria” para os “manos” da vila. Fugindo de uma viatura, caiu e quebrou uma perna e um braço e ainda foi preso.

Pinóquio, assustado, desistiu do seu intento, com medo da dor que o amigo sofrera. Mas uma fada ecológica surgiu sobre a cama do boneco e sentenciou:

- Você foi feito de madeira nativa, devastando o meio ambiente e não pode continuar assim, disse a fada, lançando o encanto com sua varinha de led – que economiza energia.

Pronto. O boneco virou um marmanjo, equipado com carteira de trabalho e hoje, tenta ganhar a vida naquele reino que, de tão, tão distante, demanda três conduções para ir e duas para voltar do emprego que conseguiu em uma vídeo locadora erótica no centro da cidade.

Em terras vizinhas, do mesmo reino, viviam três porquinhos empreiteiros: Cícero, Heitor e Prático.

Cícero construía casas em áreas de manancial e vendia baratinho para os súditos metidos a espertos. Heitor era agiota e emprestava dinheiro para financiar as casas com juros abusivos. E Prático, honesto que só, erguia uma casa por vez e vendia à vista, com dificuldade.

Em um dia frio, o Lobo fiscal chegou e pulou no pescoço de Cícero.

- Calma, calma – disse o porco – conversando, tudo se resolve.

Mas o Lobo não queria saber e esbravejou, soprou  e bufou, até que chegou Heitor, com uma mala preta cheia de dinheiro.

Mais calmo, o Lobo argumentou que não podia voltar para a repartição sem nenhuma autuação.

- Tenho o que você precisa, disse Heitor.

O Lobão submeteu as obras de Prático à uma intensa fiscalização e encontrou todos as irregularidades possíveis. Impetrou logo umas vinte multas e uma raposa-repórter amiga do fiscal fez uma longa matéria denunciando o pobre porco, no Jornal Nacional.

Feliz e com a mala cheia, saiu o lobo pelo bosque, comemorando o dia gordo. Por ali, passava uma menininha linda, de vestido xadrez bem curtinho e uma capa vermelha. Ela vendia doces para sobreviver.

Galanteador, o Lobo tenta conquistar a moça e compra logo todo o cesto de guloseimas.  Chapeuzinho foi o nome que usou. Acostumada com os safados da floresta, marcou um encontro com o lobo, perto de uma enorme árvore, no alto de uma colina.

Como todo malandro tem seu dia de mané, lá vai o lobo, com rosas nas mãos, aguardar a menina, sua próxima “refeição”.  Notando o atraso, percebe que a fofa passou o celular errado.  Uma pobre velhinha que atendeu.

Esfomeado, o Lobo não teve dúvidas. Fez uma voz de menininha abandonada, pegou o endereço da velhinha e partiu pra cima.

Pensionista da previdência do reino, aos 79 anos, passava a maior parte do tempo nas filas dos hospitais públicos e farmácias populares daquela terra encantada. O lobo não teve dificuldade nenhuma.

Por ali, passava uma tropa de elite, uma espécie de BOP medieval, com caçadores armados até os dentes. 

Ouviram os gritos e invadiram a casa. Diante dos sinais de violência constatados, partiram para cima do lobo para tentar salvar a velhinha.

Mas, com um rápido telefonema, o Lobo acionou o Sistema de Proteção Ambiental do Reino (SPA). Eles chegaram logo e argumentaram que, mesmo o Lobo tendo devorado a senhora, era um animal em extinção e deveria ser preservado.

Foi condenado por homicídio culposo, cometido pelo descontrole dos próprios instintos. Réu primário, sem antecedentes e com residência fixa, cumpriu seis meses e foi liberado. Hoje vive confortavelmente nas Ilhas Maurício.

Sentada em uma sala, cercada de comidinhas engordativas, estava uma certa formiga, que assistiu toda história em um documentário completo sobre as aventuras do Lobo mau, transmitido em uma emissora comunitária. Ficou indignada.

Formiga passou o verão trabalhando muito para ampliar sua casa e juntar alimentos.  Durante aqueles dias de sol, uma cigarra folgada ficou perambulando entre as tavernas do reino, enchendo a cara e cantando com aquela voz irritante.

A formiga, vendo o corpo padecer com tanto trabalho, ficou deprimida e se encheu de remédios, tamanha a inveja que tinha da cigarra de vida fácil e corpo perfeito. Toda a noite, diante do espelho, não se conformava com o tamanho dos seus quadris.

De repente, ouviu uma carruagem a buzinar na porta.

- Diga lá, tanajura – mangava a cigarra com voz notadamente amolecida pelo álcool.

Heitor, o porco-agiota estava nas rédeas  da carruagem.

Ainda tentando levar alguma vantagem, a formiga retruca:

-  Você que se acha esperta, aonde vai nesse frio absurdo?

Após uma gargalhada, a cigarra responde:

- Pra Paris, menina. Heitor aqui, comprou um pacote em oito vezes sem juros e vamos fugir do inverno...

Para humilhar ainda mais, reforça a cigarra:

- Quer alguma coisa de lá ???

Com lágrimas nos olhos e o coração transbordando em raiva, a formiga responde:

- Quero sim! Manda o La Fontaine pra puta-que-pariu!!!!!!!!!!!

(*) texto inspirado em um original apócrifo que circulou pela web, sobre a fábula da cigarra e formiga... como sempre achei essas fábulas esquisitas, não resisti...

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Meu Terço (em memória de Gabriela Machado de Lima)




Naquela tarde, naquela sala, chorei um choro menino, desses sem mais nem porque, que não se sabe bem, se dor ou emoção, tristeza ou saudade.

Salas e templos são quase a mesma coisa quando a oração toma conta do lugar. Pessoas unidas repetindo as mesmas palavras, invocando o que tem de melhor, alcançam um pedaço do céu e tocam a Deus com sua prece, com seu mantra.

Verdade seja dita, meu coração sangrava. Sobre o altar da mesa de centro, estavam dezenas de sacrifícios e oferendas que as escolhas da vida nos acumulam. Um passado que teimo em transformar com minha prosa.  Era o terço da minha vida que ecoava....

A Ave Maria, repetida como poesia era a mesma daquela missa que consagrou o vigário da velha paróquia do bairro Jardim, onde recebi a primeira eucaristia, vestindo calça vinho e camisa branca com gravata borboleta.

Após  a celebração, brilhantemente presidida pelo bispo da diocese, o coroinha receberia  a notícia da sua primeira grande perda, cuja saudade dá nome a este blog. Mesmo que o tempo e a distância digam não, eu e meus irmãos ainda choramos aquele momento.

Mal sabia que o sacerdote em questão seria cogitado como Papa e seu protegido na catedral de São Bernardo eleito o presidente mais popular da história do Brasil. Não importa. Naquele momento, o acólito rezava por mais um minuto ao lado do seu avô, apenas isso....

Mas a sala e a mesa eram grandes o suficiente para outras lembranças, bem mais leves e gostosas. Dos sobrinhos que ainda me tratam como tio, dos tios e tias que ganhei de graça ao longo da vida.

A tia copeira da rádio Jovem Pan que desviava o café antes mesmo de servir o dono da empresa. A tia do lanche dos estúdios Maurício de Sousa que curou minha pneumonia com xarope de agrião e mel. E como não lembrar a tia Jane, que me ensinou as primeiras letras.

Também ganhei esse cargo, quase honorífico de tio, há pouco tempo, quando a bela Isabela batizou-me eletronicamente como tal e fiquei todo orgulhoso. Matheus, Letícia, Amanda e Larissa também me chamam assim...

Outras delícias da vida passeavam entre as contas do terço: Bianca, minha afilhada por escolha dos seus pais,  e Bia, sua irmã, que me adotou como padrinho por conta e risco.

Entre as crianças que não são mais crianças, ali estava esse menino-homem que percorria as casas do bairro nas novenas e pedia com fervor as graças mais simples diante da imagem de Nossa  Senhora, virgem que certamente sorria com a inocência do seu filho. Era aquele menino que chorava no meio da sala, sem entender a própria emoção.

Como o terço, a vida tem seus mistérios. Custei a entender os momentos tristes que vivi e cheguei a rezar pedindo misericórdia. Mas, em momento algum, duvidei que era preciso seguir a ladainha sem perder a fé.

Assim foi quando Valtão nos deixou e outros filhos de pais incríveis ofereceram-me o ombro. Meus irmãos por escolha, Duda e Rogério, cruzaram antes essa ponte. Com eles, aprendi a rezar minha saudade e aceitar meu luto.

Viver a perda é dos aprendizados mais difíceis da vida. Talvez o grande desafio, sobretudo, depois da segunda metade da existência, quando passamos a enxergar a própria finitude.

Se soubesse disso, talvez fosse mais fácil esquecer a namorada que me deixou naquele carnaval de 91 e desfilou faceira na Sapucaí, para a tristeza do moço de 20 anos e muita vaidade. Hoje, rimos do episódio que outrora me consumia.

Outras paixões transformaram-se em saudade. Outras saudades em nostalgia. Amigos novos vieram, velhos amigos se foram. Essa é a contabilidade do tempo, a Salve Rainha do Rosário.

Esse talvez seja o mistério mais inquietante do terço que chamamos vida: como o passado se transforma dia após dia.

O segredo, revela-me baixinho Nossa Senhora, é fazer de cada sala um templo, da cada lembrança uma oferenda e, de cada prece, uma Ave Maria.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Luísa, nossa escultura



Cheguei em casa por volta das 11h30, naquele sábado, após uma maratona do mestrado, às voltas de investigar uma tal de infografia, entre teorias semióticas e metodologias complicadas. Estudava um certo “alfabetismo visual”, tentando compreender a linguagem que, hoje sei, só faz sentido quando o coração está no bico da pena.

Luciana estava na cozinha preparando algo para o almoço. Linda, Luciana, sempre linda. A voz mansa, o sorriso perfeito....Me encantei por ela na sala de aula. Professor inspirado, notei a moça de cabelos encaracolados logo nos primeiros dias de 1996. Ela vestia uma camisa  com estampa de oncinha e usava óculos de grau – adoro óculos. Eles protegem a beleza como uma cortina transparente.... Quando não estão lá, a luminosidade explode.

Naquela manhã, minha esposa estava especialmente feliz e não economizava sorrisos. Havia um brilho secreto nos seus olhos claros que remetiam ao nosso primeiro beijo no alto da megalópole, ao som de um bom piano...

Deixamos uma porção de lulas que nada combinava com vinho tinto de segunda  emborrachar sobre a mesa... Por mais de 10 anos, lembramos aquela noite.

Outras noites lindas vieram e um tema era freqüente: a continuidade. Sim, éramos jovens e deliciosamente sonhadores. Queríamos nosso canto, nossa história, nossa vida.

Namoramos pouco... Um ano, um mês e nove dias... Tempo suficiente para esboçar nossas primeiras telas, ainda com traços de carvão, rabiscando a vida, como se fôssemos capazes de desenhar o futuro.

Jornalistas que somos, começamos pelas letras. Surgiu um “L”, depois o “U” . Um estranho e mágico consenso  deu forma à palavra  Luísa, assim com “s” e acento no “I”.

Desenhamos seus cabelos, esculpimos seu rosto, iluminamos seus olhos... Nada nesse mundo foi criado com tanto zelo, tanto amor e tanto carinho. Nenhum desenho era tão real mesmo saindo das mãos de artistas amadores que éramos.

Naquela manhã de sábado, os esboços da nossa vida estavam quase todos prontos. Neles cabiam cenas de jantares deliciosamente longos, perfis de amigos eternos e rabiscos de viagens que tinham o oceano ao fundo.

Na mesa da sala, um envelope branco, com uma folha escrita com números e letras pequenas estava a minha espera. Cheguei esbaforido e olhei superficialmente. Não entendi muito bem... A ficha demorou a cair... Eram números de partículas com um referencial.

Luciana me induziu ao erro dizendo que não seria daquela vez. Li, reli e... EPA!!!!

Faltavam naquele papel os cabelos ruivos, olhos claros e o sorriso aberto. Ali também não estavam as manchas de noites acordadas, borrões de preocupações, medos e anseios.

Não havia no desenho das letras o movimento engraçado dos bracinhos abrindo de repente. Não havia nada. Mas, não importa... Luísa saltava do papel para as nossas vidas como o projeto de uma grande escultura.

Tive em minhas mãos um desenho de Amilcar de Castro para uma pulseira de prata que a joalheira Beth Loeb desenvolveu. Eram cartolinas enormes, com cálculos e rabiscos. Não importava para o mestre o tamanho de sua criação, mas sim a grandiosidade da idéia. Pulseiras delicadas ou esculturas gigantes brotavam da mesma forma.

Luísas tem um tom concretista. São grandes, fortes e imponentes. Não passam despercebidas.

Desde a Luísa de Tom Jobim, como um brilhante que partindo a luz explode em sete cores, passando por outras Luísas históricas que tive a honra de conhecer, todas enfrentam as três dimensões com muita coragem.

Luiza Eluf, promotora de aço que catalogou com propriedade os crimes contra mulheres, discursou para os meus alunos em uma noite inspirada.

Luiza Erundina, primeira prefeita que enfrentou a São Paulo de homens pouco educados e políticos corruptos, tive a honra de entrevistar em momentos críticos. Monumento de honestidade e coragem!

Luísas são assim, com S ou com Z, não vieram ao mundo para pouco. São esculturas perenes que fazem e contam a sua história sem medo do metal que Amilcar de Castro retorceu e do brilhante que Tom Jobim converteu em poesia.

Naquela manhã, era minha Luísa que se anunciava. Minha escultura  que, contra a luz, reflete tons de rosa e carmim.

Ao metal corajoso que forja o seu espírito, acrescentamos cores e contornos. Nas faces, arredondamos bochechas fartas com massa de bondade e verniz de alegria.

Desfiamos fios de ouro para recobrir a obra em alto estilo. O olhar, iluminamos como o céu que só Cézanne soube pintar, recoberto com resina forte de generosidade e compreensão.

O coração, esse sim, elemento crucial da escultura, eu e Luciana moldamos em dois tempos. Preenchi cada ventrículo com o amor pelos mais fracos e esse espírito de herói que todo jornalista carrega em sua alma.

A mãe deu o acabamento associando a ternura, a fragilidade toda feminina, a atenção com os mais velhos e a capacidade de chorar até em casamento errado.

Escondido, numa noite de luar, acrescentei  àquele coração o amor pelos animais que a mãe sempre quis distantes da sua casa.

Nossa escultura teve várias fases. Algumas mais arredondadas, outras pontiagudas e doloridas, como a suspeita de meningite aos primeiros dias de vida.

Hoje, nós, pretensos artistas, assistimos ao mundo acrescentar cores e tons à nossa obra. Dolorido, a cada dia, perder a autoria de algo tão lindo e fascinante.

Por outro lado, como obra aberta que somos, nos orgulhamos dos contornos que a vida acrescenta aos nossos traços.

Amanhã nossa escultura ganhará títulos e prêmios, honras e diplomas. O nome Luísa pode ser precedido de termos como doutora, engenheira, veterinária,  professora ou até – que Deus a livre – jornalista.

Mas apenas quando a criatura esculpir sua própria obra, compreenderá que nada nesse mundo é mais forte que o metal que a forjou: o amor!

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Santos é Longe?



Marcos é engraxate e não sabe nadar. Ele está tentando mudar de vida, mergulhar no mundo da corretagem. Aos finais de semana, trabalha em um lançamento imobiliário na Zona Leste e está prestes a realizar um grande sonho – o rapaz quer ser surfista.

O sonho veio do apelido, Surfista, que ganhou dos amigos da “vila” graças a seu visual despojado, com uma elegância jovial que talvez nem ele saiba reconhecer.

O rapaz fatura 50 reais por dia engraxando cuidadosamente sapatos na Vila Madalena. Se conseguir vender o imóvel, vai embolsar uma comissão de cinco mil reais, o equivalente a uma centena de dias trabalhados e alguns milhares de sapatos lustrosos.

Engraxate é dessas profissões cheias de dignidade que resistem aos novos tempos. Um sapato bem engraxado é algo bonito de usar e não há alternativas modernosas que substituam a escova e a flanela.

Ali, sentado em sua mala de trabalho, ele conta do seu sonho e diz que, em Santos, há uma escola de surfistas que não cobra nada. O menino pergunta:

- Santos é longe?

Penso muito para responder. Afinal, Santos é longe? Longe do que? Longe de quem? Qual a distância entre a caixa de sapatos e a prancha de surf?

Essa distância já foi bem menor, isso é fácil afirmar. Comecei a vida como Office-boy, ofício nobre.  Presidentes de grandes empresas começaram assim e sabiam valorizar aqueles meninos que, antes do surf, sonhavam com o posto de auxiliar de escritório.

Vieram os motoboys, marmanjos explorados, que terceirizam a sua esperança em empresas que podem prometer apenas o valor da corrida. No futuro, um motoboy será, no máximo, um motoboy, se der a sorte de sobreviver. Para ele, Santos é aquela alameda dos Jardins.

Quando era garoto desejei muito ter a minha própria caixa de engraxate. Alguns amigos tiveram a sua e faturaram bons trocados na vizinhança. Para todos nós, meninos de classe média, bem nascidos e nutridos, Santos nunca foi muito longe.

Mesmo assim, aprendemos a valorizar o trabalho desde cedo. Muito provavelmente porque encontramos pela vida aqueles que também valorizavam o que fazíamos. Na rua, engraxando ou levando documentos, aprendemos muito.

Aprendemos a nos resguardar, evitando trombadinhas e batedores de carteira (mundo romântico esse, de ladrões pouco agressivos, até habilidosos). Aprendemos a solidariedade, pagando as contas dos colegas boys para não perder o horário do banco.

Como era bom, no final do mês, ter um dinheirinho para pagar o cinema da namorada ou a pipoca da praça. É... Santos era ali na esquina...

Outros engraxates cruzaram o meu caminho ao longo da vida. Um deles, muito especialmente, ajudou-me a compreender uma grande lição de jornalismo.

O chefe era Fernando Vieira de Mello, homem genial, de personalidade forte e convicções indestrutíveis. Eu era rádio-escuta, uma espécie de Office boy da redação, o posto mais baixo daquele quartel.

Diretor de jornalismo da Jovem Pan, por 40 anos, Fernando reinventou o rádiojornalismo, assumindo a audiência rotativa como princípio de produção de notícias.

Eu assistia às reuniões de pauta esticando o ouvido na porta da sala. Fernando era um filósofo do cotidiano. Tirava leite de pedra e tinha uma idéia melhor do que a outra.

Mas, naquela manhã, o velho mestre estava irritado com a postura burocrática dos repórteres da rádio. Passou bons minutos lendo aquele calhamaço datilografado sem encontrar ali sequer uma boa idéia de matéria para aquele dia.

Fernando explodiu!!!  Rasgou as folhas, disse que cada repórter deveria saber o que fazer, sem pauta nenhuma. Saiu batendo os pés... Na porta flagrou-me assustado com a cena, agarrou o meu braço e me arrastou rádio afora.

Resmungava e esbravejava em direção ao elevador. Dizia que os repórteres eram todos uns idiotas sem iniciativa.

Já no térreo, segurando firme o meu ante-braço, sentenciou:

- Filho, vamos engraxar os sapatos!

Não ousaria discordar.

Seguimos pela Paulista e paramos diante do Parque Trianon, onde meia dúzia de cadeiras esperavam os sapatos dos executivos da região.

Fomos saudados como reis, já que Fernando era cliente assíduo. O engraxate começou o seu trabalho e o mestre puxou conversa:

- Como está o movimento? - perguntou.

- Ah, doutor, tá fraco, muito fraco... Aqui na Paulista não tem mais ninguém tão elegante como o senhor. Só encontro o povo da minha “vila”, todo mundo de tênis.

Pagamos os serviços prestados e Fernando, concluiu a aula:

- Tá vendo, filho, isso é pauta: a zona leste invadiu a Paulista.

A mesma Zona Leste onde Marcos Surfista batalha pelo seu sonho. Longe, muito longe de Santos, mas perto, bem perto da Paulista.

Naqueles meus 19 anos, eu não era um jornalista – não sabia pautar, entrevistar e falava com a voz trêmula. 
Mesmo assim percorri aquela avenida.

Entre o engraxate e o surfista, a pauta e rádio-escuta,  o diretor e seus repórteres, existe um caminho a seguir, alguém que nos leva pelo braço e uma caixa a carregar.

Meu caro Marcos-surfista-engraxate, se um dia ler esse texto, saiba:

Santos muda de lugar todos os dias! Hoje, pode parecer longe demais. Amanhã, poderá estar bem perto e, depois, longe novamente. Essa distância não importa!

Santos é enorme, do tamanho dos seus sonhos.... E, se acredita que pode ser um surfista, você já o é, mesmo sem saber nadar...