sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Santos é Longe?



Marcos é engraxate e não sabe nadar. Ele está tentando mudar de vida, mergulhar no mundo da corretagem. Aos finais de semana, trabalha em um lançamento imobiliário na Zona Leste e está prestes a realizar um grande sonho – o rapaz quer ser surfista.

O sonho veio do apelido, Surfista, que ganhou dos amigos da “vila” graças a seu visual despojado, com uma elegância jovial que talvez nem ele saiba reconhecer.

O rapaz fatura 50 reais por dia engraxando cuidadosamente sapatos na Vila Madalena. Se conseguir vender o imóvel, vai embolsar uma comissão de cinco mil reais, o equivalente a uma centena de dias trabalhados e alguns milhares de sapatos lustrosos.

Engraxate é dessas profissões cheias de dignidade que resistem aos novos tempos. Um sapato bem engraxado é algo bonito de usar e não há alternativas modernosas que substituam a escova e a flanela.

Ali, sentado em sua mala de trabalho, ele conta do seu sonho e diz que, em Santos, há uma escola de surfistas que não cobra nada. O menino pergunta:

- Santos é longe?

Penso muito para responder. Afinal, Santos é longe? Longe do que? Longe de quem? Qual a distância entre a caixa de sapatos e a prancha de surf?

Essa distância já foi bem menor, isso é fácil afirmar. Comecei a vida como Office-boy, ofício nobre.  Presidentes de grandes empresas começaram assim e sabiam valorizar aqueles meninos que, antes do surf, sonhavam com o posto de auxiliar de escritório.

Vieram os motoboys, marmanjos explorados, que terceirizam a sua esperança em empresas que podem prometer apenas o valor da corrida. No futuro, um motoboy será, no máximo, um motoboy, se der a sorte de sobreviver. Para ele, Santos é aquela alameda dos Jardins.

Quando era garoto desejei muito ter a minha própria caixa de engraxate. Alguns amigos tiveram a sua e faturaram bons trocados na vizinhança. Para todos nós, meninos de classe média, bem nascidos e nutridos, Santos nunca foi muito longe.

Mesmo assim, aprendemos a valorizar o trabalho desde cedo. Muito provavelmente porque encontramos pela vida aqueles que também valorizavam o que fazíamos. Na rua, engraxando ou levando documentos, aprendemos muito.

Aprendemos a nos resguardar, evitando trombadinhas e batedores de carteira (mundo romântico esse, de ladrões pouco agressivos, até habilidosos). Aprendemos a solidariedade, pagando as contas dos colegas boys para não perder o horário do banco.

Como era bom, no final do mês, ter um dinheirinho para pagar o cinema da namorada ou a pipoca da praça. É... Santos era ali na esquina...

Outros engraxates cruzaram o meu caminho ao longo da vida. Um deles, muito especialmente, ajudou-me a compreender uma grande lição de jornalismo.

O chefe era Fernando Vieira de Mello, homem genial, de personalidade forte e convicções indestrutíveis. Eu era rádio-escuta, uma espécie de Office boy da redação, o posto mais baixo daquele quartel.

Diretor de jornalismo da Jovem Pan, por 40 anos, Fernando reinventou o rádiojornalismo, assumindo a audiência rotativa como princípio de produção de notícias.

Eu assistia às reuniões de pauta esticando o ouvido na porta da sala. Fernando era um filósofo do cotidiano. Tirava leite de pedra e tinha uma idéia melhor do que a outra.

Mas, naquela manhã, o velho mestre estava irritado com a postura burocrática dos repórteres da rádio. Passou bons minutos lendo aquele calhamaço datilografado sem encontrar ali sequer uma boa idéia de matéria para aquele dia.

Fernando explodiu!!!  Rasgou as folhas, disse que cada repórter deveria saber o que fazer, sem pauta nenhuma. Saiu batendo os pés... Na porta flagrou-me assustado com a cena, agarrou o meu braço e me arrastou rádio afora.

Resmungava e esbravejava em direção ao elevador. Dizia que os repórteres eram todos uns idiotas sem iniciativa.

Já no térreo, segurando firme o meu ante-braço, sentenciou:

- Filho, vamos engraxar os sapatos!

Não ousaria discordar.

Seguimos pela Paulista e paramos diante do Parque Trianon, onde meia dúzia de cadeiras esperavam os sapatos dos executivos da região.

Fomos saudados como reis, já que Fernando era cliente assíduo. O engraxate começou o seu trabalho e o mestre puxou conversa:

- Como está o movimento? - perguntou.

- Ah, doutor, tá fraco, muito fraco... Aqui na Paulista não tem mais ninguém tão elegante como o senhor. Só encontro o povo da minha “vila”, todo mundo de tênis.

Pagamos os serviços prestados e Fernando, concluiu a aula:

- Tá vendo, filho, isso é pauta: a zona leste invadiu a Paulista.

A mesma Zona Leste onde Marcos Surfista batalha pelo seu sonho. Longe, muito longe de Santos, mas perto, bem perto da Paulista.

Naqueles meus 19 anos, eu não era um jornalista – não sabia pautar, entrevistar e falava com a voz trêmula. 
Mesmo assim percorri aquela avenida.

Entre o engraxate e o surfista, a pauta e rádio-escuta,  o diretor e seus repórteres, existe um caminho a seguir, alguém que nos leva pelo braço e uma caixa a carregar.

Meu caro Marcos-surfista-engraxate, se um dia ler esse texto, saiba:

Santos muda de lugar todos os dias! Hoje, pode parecer longe demais. Amanhã, poderá estar bem perto e, depois, longe novamente. Essa distância não importa!

Santos é enorme, do tamanho dos seus sonhos.... E, se acredita que pode ser um surfista, você já o é, mesmo sem saber nadar...

10 comentários:

  1. Ah., querido...A mais pua verdade: "Santos muda de lugar todos os dias... " Os meus sonhos tem tambem muitos "Santos". Uns que ja visitei, uns que quero visitar e outros, tenho certeza, nem imagino quando e como me levarao. Uns estao tao perto...e outros tao longe... Mas o mais importante e que me conforta e saber que "Santos" definitivamente existe.
    Bjo gde, Bia

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  2. Belo texto!! Aliás, como sempre! Abcs

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  3. ah, demais! vou mandar para o fernandinho, posso?
    ana paula

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  4. claro que pode... você é parte dessa história. beijos

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  5. Obrigado Ronald por escrever essa Histótia fantastica minha! valew abraços!

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  6. Eu acredito Que ja sou um Surfista! Ronald Sem Saber ?NadaR! kkkkkkkkk''
    PQ quem não sabe aprender Néh !
    Ninguem Nasce Sabendo CertO!
    abraços Fica com DeuS!

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  7. Isso mesmo, meu caro!
    Bons sonhos e boas ondas pra você!
    abração

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  8. Igualmente pra vC!
    Fica Com Deus!
    é Eu sim O MarcoS!

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