sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Passado na mesa de bar



A idéia de mudar o passado é das maiores descobertas que fiz no presente. Tenho um apego com o tempo e a memória que só agora compreendo com mais clareza.

Muito, muito além da simples nostalgia – sentimento meio bobo e pouco funcional – o passado é uma fonte de aprendizado, inspiração e explicação para o futuro.

Teorias metafísicas a parte, tive problemas sérios com isso. Pouca gente compreende esse meu convívio com o passado e o jeito com que lido com ele. Para mim, esse cara é como um amigo de boteco.

Ele chega de leve, senta-se ao meu lado, pede mais uma e seguimos num bate-papo sem pretensão, cheio de histórias e aprendizados.

Outro dia ele se aproximou com um problema daqueles. Estava triste, o Passado... De dar dó! Coloquei o amigo no ombro e ouvi sua lamúria com atenção.

Outro sujeito, um tal de Futuro, vendo aquilo não se conformou com o tempo dispensado ao passado.
Foi  duro comigo e disse algo assim:

- Não se apegue a esse pobre coitado! Olhe pra frente!

Indignado retruquei:

- Mas, futuro, não diga isso. O Passado precisa de socorro... Não seja tão insensível.

O futuro, com sua empáfia, não arredou:

- Passado não muda, rapaz! O que foi triste continuará triste! Conheço esse cara e sei do que estou falando.

Não me deixei dobrar. Pedi uma caipirinha, mais uma gelada e o Passado foi mudando sua fisionomia. O amigo recordou os bons tempos e viu que o seu problema não era tão grave assim. Outros amigos juntaram-se a nós.

Lá estava a Saudade -  moça linda que só - e Mocidade chegou em seguida, toda faceira, com a filha, de vestido rodado: a menina Infância.

Também juntou-se a nós dona Memória, figura inteligente e elegante, apesar da idade avançada. Inteirona, estava preocupada com uma doença nova, mas diante de uma roda tão inspirada, esqueceu tudo...

Futuro continuou no balcão, carrancudo e sem graça.  Passado, aliviado das suas dores, chamou o casmurro.

- Chega mais, seu Futuro. Deixe de coisa... Venha pra cá que eu garanto: amanhã será um novo dia.

Com nariz torcido, Futuro atendeu ao convite. Quando puxou a cadeira, na porta do bar, algo lhe roubou o olhar.

Como era linda aquela princesa. Tinha cabelos dourados e um sorriso que iluminava o mundo. Não era possível desgrudar os olhos dela.

Veio na direção da nossa mesa. Eu, Passado e Futuro nos levantamos prontamente. A bela sentou-se e éramos só sorrisos. O futuro ficou definitivamente apaixonado. Passado nem lembrava qual era o problema do início da noite.

Discretamente, para que Futuro não ficasse enciumado, me aproximei e perguntei seu nome.

Com voz doce e amável, respondeu:

- Esperança!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Uma fábula de samba



Ele se vestiu de bamba naquela noite. O terno escuro, a camisa florida, o sapato lustroso e o chapéu panamá. O olhar continuava sério, mas o sorriso brilhava como jamais brilhou. O assovio deu lugar a uma voz poderosa. A valsa deixou o samba passar.

Aquela noite mágica começou em um almoço de domingo quando minha mãe exibiu um convite de festa de família. Chamou a atenção o texto explícito sobre a ausência de crianças e a exigência de bebidas (cerveja de primeira linha e destilados a gosto).

Levando em conta que o anfitrião era um primo da minha mãe, achei que a festa seria algo para outra geração. Torci o nariz, mas, enfim, sou o filho que leva dna Helen para balada.

Desde que meu pai morreu é assim: Marcão é o filho atencioso, com freqüência diária; Valter movimenta a vida dela de todo o jeito; e eu tiro a matriarca de casa para programas inusitados.

Passei a tarde em uma feijoada com pagode, na Vila Madalena. Tarde boa, cheia de planos, cervejas, torresmos e caipirinhas. A tarde virou noite e vi que a tal festa estava se aproximando.

Corri para a casa de minha mãe, tomei um banho rápido e seguimos para a Lapa, bairro que resume a história daquele pedaço da família, comandado pela matriarca, tia Lourdes, cunhada do vô João, figura ímpar, pra dizer o mínimo.

Hamilton é seu filho mais velho. Homem da noite, foi dono de bares e tem uma ligação estreita com boa parte do melhor do samba paulistano. Disso eu sabia. Mas a minha memória não alcançava a figura física do tal primo.

O local indicado era uma sobreloja. Lugar grande, equipado com freezers profissionais, churrasqueira, um terraço para fumantes e acredite, caro leitor, uma mesa de samba com microfones e instalações de fazer inveja para qualquer sambista.

Tudo por ali era um pouco kitsch com cores vivas e fortes e azulejos brilhantes. Nas paredes imagens de sambistas e fotos de amigos dividiam espaço com backlights de marcas de whisky  e cerveja.

Minha memória viajou até as casas de samba que freqüentei quando garoto. Vila,  Barracão de Zinco e Moema Samba. Gafieiras com bebida ruim e pipoca velha. O que importa? O samba era de primeira! Na Toca do Coelho, aprendi os primeiros passos com Jussara... Ahhh que saudade...

O acesso era uma escada íngreme que parecia não terminar. No topo, avistei uma figura conhecida. Não podia acreditar era.... meu avô! 

Isso mesmo, o vô João!!!  Minhas pernas tremeram por ver ali quase uma reencarnação de alguém que desapareceu cedo mas, até hoje, ocupa minhas melhores lembranças.

A questão é que vô João não estava em seus trajes normais. Era um autêntico sambista, no corpo do primo Hamilton. O austero metalúrgico interpretava ali um personagem que eu não conhecia. O boêmio, o sambista,  o galanteador...

Acho que foi até um pouco constrangedor o fato de não conseguir, por um bom tempo, desviar os olhos desse primo-avô...

Chegamos perto das 22h, mas o movimento não parou até as 4 da madrugada quando saímos. Gente entrando e saindo. Os músicos deixavam os bares e corriam para nos honrar com uma boa canja.

Qual não foi minha surpresa quando entre parentes distantes - aquela gente que só vemos em casamentos e enterros -  avisto alguém que mudou minha vida. Meu primeiro patrão! O nome é José Maria Baldez, dono de uma gráfica no Paraíso, que abriu as portas para os meus primeiros passos no jornalismo.

Editamos juntos uma revista de bairro chamada Viver Moema. Lá aprendi tudo o  que sei sobre o processo gráfico – que mudou muito, mas segue os mesmos princípios. Na empresa de José Maria conheci também o querido Luiz Henrique Romagnoli, parceiro de Serginho Leite, o imitador que marcou uma geração nos anos 80.

Maior ainda minha surpresa, quando me deparei com a viúva de Serginho que morreu cedo, muito cedo, neste ano de 2011. Fiquei emocionado. Coração de ouro esse cara! Só deixou risadas e ótimas histórias.

Mas, o ponto alto da noite, estava por vir. Alguém anunciou ao microfone que era hora do vô João cantar. Isso mesmo, meu avô sambista cantava poderosamente. Cheio de pose, esbanjando charme, lá foi ele.

Sentou-se ao microfone e cantou com voz de trovão, o melhor de João Nogueira e – diga-se – muito melhor que o original. João era meu avô, com licença, Sr. Nogueira!

Nascido no subúrbio nos melhores dias
Com votos da família de vida feliz
Andar e pilotar um pássaro de aço
Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço
Com as fardas mais bonitas desse meu país
O pai de anel no dedo e dedo na viola
Sorria e parecia mesmo ser feliz

Fiquei boquiaberto, encantado...

Mais tarde, minha mãe revelou algo que talvez explique essa alma boêmia que me habita. O pai do vô João era da noite, da música e da boemia. Os genes que me emocionam quando ouço as notas de um bom samba estavam todos lá.

E só descobri isso aos quarenta, nessa noite fábula... Voltamos à realidade e o primo-avô nos levou até o topo da escada. De lá acenou com o mesmo cuidado e carinho do velho João  que me ensinou a pescar, cuidar e, agora posso dizer, a sambar....

Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade
E orgulho de seu filho ser igual seu pai
Pois me beijaram a boca e me tornei poeta
Mas tão habituado com o adverso
Eu temo se um dia me machuca o verso
E o meu medo maior é o espelho se quebrar

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Feche os olhos!





Pronto! Pode abrir....

Lembre-se de quando era muito jovem e os sonhos mais intensos não duravam sequer uma noite.

Agora, pare o tempo e feche os olhos novamente.

Você já é um adulto planejando a vida, revendo as contas, produzindo, construindo.

Mais um piscar de olhos...

E uma nova vida invade a sua... aquela criança rouba um pedaço da sua existência e se faz a maior razão da sua trajetória... você está perto de Deus... Uma luz intensa te faz...

Fechar os olhos...

Novas verdades te tomaram de assalto e mostraram que você não sabe nada, nada... a vida parou por um instante, tudo ficou confuso....

Feche agora com força

Ao abrir, verá que aquela dor aparentemente infinita não durou mais do que um segundo, como um parto que extrai da sua alma uma nova criatura, melhor e mais forte.

Você merece: descanse os olhos com suavidade

Descubra que seu coração ainda é capaz de bater, você ainda transpira, deseja, quer e...

Seus olhos se fecham

Chega o seu grande dia.... o dia em que tudo o que viveu será passado e o que virá, futuro...

Cuidado ao fechar os olhos novamente!

Você pode se descobrir uma pessoa feliz, leve, cheia de histórias de amor e perdão.

Mas também poderá colecionar dores e rancores.

Antes de piscar, saiba que tudo se resume a um instante, como uma aula de história que fala de 400 anos em 40 minutos.

Quando Galileu nasceu, a terra ainda era quadrada... ele fechou os olhos e arredondou o mundo.

Depois de décadas em clausura, Mandela assumiu seu país e disseminou o perdão... fez em um piscar de olhos o que seus opressores não conseguiriam em dezenas de vidas...

No dia 11 de setembro, o mundo piscou os olhos e, quase como num sonho, num trailer de cinema, o próprio mundo acabou....

Piscamos novamente e dezenas de mineiros ressurgiram do centro da terra... o mundo recomeçou...

Um dia fecharemos os olhos de vez....

Será cedo? Será tarde?

Questão de escolha....

Escolhemos esse momento com os olhos bem abertos ou, simplesmente, fechamos os olhos e permitimos que qualquer momento nos escolha....