quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Uma fábula de samba



Ele se vestiu de bamba naquela noite. O terno escuro, a camisa florida, o sapato lustroso e o chapéu panamá. O olhar continuava sério, mas o sorriso brilhava como jamais brilhou. O assovio deu lugar a uma voz poderosa. A valsa deixou o samba passar.

Aquela noite mágica começou em um almoço de domingo quando minha mãe exibiu um convite de festa de família. Chamou a atenção o texto explícito sobre a ausência de crianças e a exigência de bebidas (cerveja de primeira linha e destilados a gosto).

Levando em conta que o anfitrião era um primo da minha mãe, achei que a festa seria algo para outra geração. Torci o nariz, mas, enfim, sou o filho que leva dna Helen para balada.

Desde que meu pai morreu é assim: Marcão é o filho atencioso, com freqüência diária; Valter movimenta a vida dela de todo o jeito; e eu tiro a matriarca de casa para programas inusitados.

Passei a tarde em uma feijoada com pagode, na Vila Madalena. Tarde boa, cheia de planos, cervejas, torresmos e caipirinhas. A tarde virou noite e vi que a tal festa estava se aproximando.

Corri para a casa de minha mãe, tomei um banho rápido e seguimos para a Lapa, bairro que resume a história daquele pedaço da família, comandado pela matriarca, tia Lourdes, cunhada do vô João, figura ímpar, pra dizer o mínimo.

Hamilton é seu filho mais velho. Homem da noite, foi dono de bares e tem uma ligação estreita com boa parte do melhor do samba paulistano. Disso eu sabia. Mas a minha memória não alcançava a figura física do tal primo.

O local indicado era uma sobreloja. Lugar grande, equipado com freezers profissionais, churrasqueira, um terraço para fumantes e acredite, caro leitor, uma mesa de samba com microfones e instalações de fazer inveja para qualquer sambista.

Tudo por ali era um pouco kitsch com cores vivas e fortes e azulejos brilhantes. Nas paredes imagens de sambistas e fotos de amigos dividiam espaço com backlights de marcas de whisky  e cerveja.

Minha memória viajou até as casas de samba que freqüentei quando garoto. Vila,  Barracão de Zinco e Moema Samba. Gafieiras com bebida ruim e pipoca velha. O que importa? O samba era de primeira! Na Toca do Coelho, aprendi os primeiros passos com Jussara... Ahhh que saudade...

O acesso era uma escada íngreme que parecia não terminar. No topo, avistei uma figura conhecida. Não podia acreditar era.... meu avô! 

Isso mesmo, o vô João!!!  Minhas pernas tremeram por ver ali quase uma reencarnação de alguém que desapareceu cedo mas, até hoje, ocupa minhas melhores lembranças.

A questão é que vô João não estava em seus trajes normais. Era um autêntico sambista, no corpo do primo Hamilton. O austero metalúrgico interpretava ali um personagem que eu não conhecia. O boêmio, o sambista,  o galanteador...

Acho que foi até um pouco constrangedor o fato de não conseguir, por um bom tempo, desviar os olhos desse primo-avô...

Chegamos perto das 22h, mas o movimento não parou até as 4 da madrugada quando saímos. Gente entrando e saindo. Os músicos deixavam os bares e corriam para nos honrar com uma boa canja.

Qual não foi minha surpresa quando entre parentes distantes - aquela gente que só vemos em casamentos e enterros -  avisto alguém que mudou minha vida. Meu primeiro patrão! O nome é José Maria Baldez, dono de uma gráfica no Paraíso, que abriu as portas para os meus primeiros passos no jornalismo.

Editamos juntos uma revista de bairro chamada Viver Moema. Lá aprendi tudo o  que sei sobre o processo gráfico – que mudou muito, mas segue os mesmos princípios. Na empresa de José Maria conheci também o querido Luiz Henrique Romagnoli, parceiro de Serginho Leite, o imitador que marcou uma geração nos anos 80.

Maior ainda minha surpresa, quando me deparei com a viúva de Serginho que morreu cedo, muito cedo, neste ano de 2011. Fiquei emocionado. Coração de ouro esse cara! Só deixou risadas e ótimas histórias.

Mas, o ponto alto da noite, estava por vir. Alguém anunciou ao microfone que era hora do vô João cantar. Isso mesmo, meu avô sambista cantava poderosamente. Cheio de pose, esbanjando charme, lá foi ele.

Sentou-se ao microfone e cantou com voz de trovão, o melhor de João Nogueira e – diga-se – muito melhor que o original. João era meu avô, com licença, Sr. Nogueira!

Nascido no subúrbio nos melhores dias
Com votos da família de vida feliz
Andar e pilotar um pássaro de aço
Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço
Com as fardas mais bonitas desse meu país
O pai de anel no dedo e dedo na viola
Sorria e parecia mesmo ser feliz

Fiquei boquiaberto, encantado...

Mais tarde, minha mãe revelou algo que talvez explique essa alma boêmia que me habita. O pai do vô João era da noite, da música e da boemia. Os genes que me emocionam quando ouço as notas de um bom samba estavam todos lá.

E só descobri isso aos quarenta, nessa noite fábula... Voltamos à realidade e o primo-avô nos levou até o topo da escada. De lá acenou com o mesmo cuidado e carinho do velho João  que me ensinou a pescar, cuidar e, agora posso dizer, a sambar....

Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade
E orgulho de seu filho ser igual seu pai
Pois me beijaram a boca e me tornei poeta
Mas tão habituado com o adverso
Eu temo se um dia me machuca o verso
E o meu medo maior é o espelho se quebrar

2 comentários:

  1. Lindo , Ronald....ai que saudades do meu avo, que nao era sambista mas adorava uma marchinha, eram as cancoes que cantava para todos os netos. Sabemos muitas. Interpretava com voz forte e teatral. Entao licenca para conversar tbem com o Vo Romeu:

    " eu sou pirata da perna de pau, tum, tum, do olho de vidro, da cara de mau! Minha galera, nos verdes mares nao teme o tufao...minha galera, so tem garotas na guarnicao.! Por isso se outro Pirata, tentar abortagem eu pego o facao! E grito do alto da popa: Opa! Homem nao!

    Bjo, Bia

    Bia

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  2. Conversar com o vô é sempre gostoso, né? Obrigado! bjs

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