segunda-feira, 9 de abril de 2012

Um bom lugar para morrer....


Escolher um lugar para viver não é nada complicado.  Aliás não há segredos em viver, em seguir administrando o cotidiano. Escolhemos casas, apartamentos, sítios, hotéis, enfim, lugares para passar a vida. E deixamos de escolher o lugar mais importante de toda a caminhada: um lugar para morrer.

Não, caro leitor, não há nada de mórbido nisso. Basta pensar com clareza nos grandes momentos da sua vida. Pense no auge da sua felicidade e... pense bem. Não seria ótimo morrer assim, com um sorriso nos lábios, alegria no coração e algo lindo diante dos olhos?

Pois bem! O sorriso, a alegria no coração – o dinheiro no bolso, a mulher bonita e tudo mais – conseguimos, com mais ou menos esforço, determinar ao longo da vida. Tudo isso é fruto de esforço, trabalho, charme e talento.

Mas, caro amigo, morrer no lugar escolhido não é fácil. Levar nos olhos uma última imagem que seja capaz de aproximar sua alma do divino, de completar com beleza seu último suspiro, ahhh isso sim gostaria de poder escolher.

Diz a lenda que Jorginho Guinle, milionário carioca que nunca trabalhou, passou sua última noite na suíte presidencial do Copacabana Palace e embalou a morte com champanhe safrado e um bom prato de estrogonofe.

Darcy Ribeiro, antropólogo iluminado, fugiu do hospital e se empanturrou de pastéis e caldo de cana. “Não morreu logo, mas deu o recado vital: queria viver para aproveitar a vida, e não para constar entre os vivos, no qual sempre fora vivíssimo”, narra com graça Carlos Heitor Cony.

Outra grande figura com quem tive a honra de trabalhar, o jornalista Fernando Vieira de Melo declarava aos quatro ventos que gostaria de morrer na sua sala de vidro no centro da redação da goloriosa Rádio Jovem Pan, em São Paulo.

            - Filho, eu não morrerei, porque gente como eu não morre, simplesmente. Eu vou explodir !!!! – dizia Fernando no início de um discurso que precedia um verdadeiro manual de instruções para a sua morte que incluia um chamado de urgência para que Reale Jr voltasse da França com a incumbência de remover o corpo e atirá-lo das escadarias do prédio da Gazeta, na avenida Paulista, 900.

            - Assim minha família receberá o seguro por acidente! Treinei o Reale a vida inteira para esse momento! – profetizava Fernando.

De um certo jeito, esses dois homens fortes e geniais nos diziam que gostariam de morrer cercados por tudo aquilo representasse o sagrado. Do caldo de cana à sala da redação, passando por pastéis e discursos inflamados, Darcy e Fernando desejaram mortes cercadas de verdade e daquilo que lhes emprestasse a idéia da eternidade ao lado do que, de fato, é eterno.

Gostaria, do mesmo modo, de cerrar meus olhos com a minha visão de eternidade. Algo simples e tranquilo. Alguns poucos lugares poderiam sediar esse momento, tão único quanto o nascimento.

A varanda da minha casa no Guarujá seria um deles. Tenho certeza que o Paraíso é parecido com aquilo que vivi na minha infância. Fecharia os olhos entre as paredes de tijolos a vista com a montanha que escondia minha praia secreta no horizonte.

Certamente, ao abrir os olhos, encontraria o mesmo cenário, com Valtão e Vô João jogando truco aos berros e o cheiro da manjuba no fubá que só a vó Neta sabia fazer. Tigrão também estaria por lá a pular nas asas dos anjos, tentando derrubá-los.

Também morreria feliz no Caminito, em Buenos Aires, ao som de um  tango bem tocado. Do outro lado da vida, com Dona Helen em meus braços, dançaria eternidade afora, como dançamos em Palermo. Pararia apenas para o repouso na melhor cama do mundo, no topo das escadas do Hotel Alvear.

Hoje, cá onde escrevo, também partiria com um sorriso largo nos lábios. À minha frente, um lago, garças brancas e cisnes descansam o meu olhar em um cenário deslumbrante desse lugar onde Deus me abençou para trabalhar e construir o futuro. Aqui, contemplo o belo, que sempre roubou o meu olhar. E o belo me transforma.

Bastaria piscar e, novamente, o Paraíso se reconstruiria talvez com a suavidade do sorriso e o doce olhar de Rebeca com quem também bailei ali bem perto em uma sala de múltiplos espelhos e notas românticas..

Morreria numa quinta-feira, por uma questão estratégica. Meu velório seria de madrugada, com o féritro pela manhã do dia seguinte. Assim, meus amigos poderiam enforcar a sexta-feira e passar o final de semana lembrando velhas histórias.

Por falar em velório, que fique aqui registrado: quero algo muito sofisticado e um bom bar para servir meus cumpadres e comadres. Vinho bom para os mais finos, Rioja, talvez... Whisky para os bacanas e cachaça para os  simples de coração, porque é deles a última mesa.

Entre os quitutes, escondidinho da Sheila, queijo da serra da Canastra, pimenta de biquinho, empadinhas da Senna Madureira (as melhores...) e bolinhos de carne do Amigo Leal, boteco da Amaral Gurgel, em São Paulo.

De um lado do caixão, Rogério reconta velhas mentiras sobre o morto boêmio e suas aventuras pelos interiores do Brasil e da capital paulista. De outro, Dudão compõe meu epitáfio com o melhor texto da minha geração.

A trilha sonora mescla Legião, Cazuza, Oswaldo Montenegro e Paulinho da Viola.

Quero Ana Lucia no decór, Bia na recepção, Luciana na produção e outras tantas mulheres fundamentais da minha vida testemunhando essa despedida, com pouco choro, espero.

Luísa fará as honras da casa, com levas especiais de pastéis de carne, de hora em hora.

Essa parte previsível, pode mesclar momentos de emoção como o velório de Chateaubriand, aqui descrito por seu biógrafo, Fernando Moraes.

De repente, o silêncio é quebrado pelo estridente barulho de uma martelada. Em seguida outra, e mais outra e mais outra. Em uma enorme  escada de pedreiro está trepado o diretor do MASP, Pietro Maria Bardi, que continua batendo pregos na parede - se cair dali ele desabará em cima do morto. Indiferente ao escândalo que provoca, Bardi desce degrau por degrau e chama alguns operários para  pendurar, acima do caixão, três monumentais telas do museu. No centro da parede, bem em cima da cabeça do morto, vai a Banhista com o cão grifo, de Renoir, um nu de pouco menos de dois metros de altura: expondo generosos seios descobertos, a banhista cobre levemente o sexo com a mão esquerda, tendo na direita o manto que se espalha sobre o chão, onde o cão está deitado. À esquerda e um pouco mais abaixo da Banhista, Bardi manda os operários pendurarem um quadro de Ticiano, Retrato do cardeal Cristóforo Madruzzo - o organizador do Concílio de Trento -, e do outro lado,na mesma altura deste, também com quase dois metros de altura, outro purpurado: é o esplendoroso retrato de corpo inteiro de d. Juan Antônio Litrente, secretário da Inquisição espanhola, pintadopor Goya.

O contraste dos retratos de dois cardeais cercando uma exuberante mulher nua, sobre a cabeça de um morto, é chocante. Indignado, um dos diretores dos Diários

Associados - um dos "minimaiorais ", como Bardi se referia a eles - se aproxima do diretor do museu, e lhe tenta passar uma descompostura:



- Com efeito, professor Bardi! Isto aqui é a câmara-ardente de Assis Chateaubriand, estamos diante das maiores autoridades deste país, e o senhor me coloca dois religiosos ladeando uma mulher despida? Durante um velório? Isto é um escândalo, vamos tirar esses quadros daí já!



Bardi abre os braços e responde, também na frente de todos,com franqueza desconcertante:



- Mas dottore, esta é a minha última homenagem a Assis Chateaubriand, vero? Nesta parede estão as três coisas que ele mais amou na vida: o poder, a arte e mulher pelada.”



Extravagâncias à parte, gostaria  de celebrar a morte como celebrei a vida. De ser lembrado pelas minhas verdades, por menos verdadeiras que sejam. De levar comigo, a lealdade dos meus amigos, o carinho da minha família e festejar o fim em meio às melhores lembranças.