Escolher
um lugar para viver não é nada complicado.
Aliás não há segredos em viver, em seguir administrando o cotidiano.
Escolhemos casas, apartamentos, sítios, hotéis, enfim, lugares para passar a
vida. E deixamos de escolher o lugar mais importante de toda a caminhada: um
lugar para morrer.
Não,
caro leitor, não há nada de mórbido nisso. Basta pensar com clareza nos grandes
momentos da sua vida. Pense no auge da sua felicidade e... pense bem. Não seria
ótimo morrer assim, com um sorriso nos lábios, alegria no coração e algo lindo
diante dos olhos?
Pois
bem! O sorriso, a alegria no coração – o dinheiro no bolso, a mulher bonita e
tudo mais – conseguimos, com mais ou menos esforço, determinar ao longo da
vida. Tudo isso é fruto de esforço, trabalho, charme e talento.
Mas,
caro amigo, morrer no lugar escolhido não é fácil. Levar nos olhos uma última
imagem que seja capaz de aproximar sua alma do divino, de completar com beleza
seu último suspiro, ahhh isso sim gostaria de poder escolher.
Diz
a lenda que Jorginho Guinle, milionário carioca que nunca trabalhou, passou sua
última noite na suíte presidencial do Copacabana Palace e embalou a morte com
champanhe safrado e um bom prato de estrogonofe.
Darcy
Ribeiro, antropólogo iluminado, fugiu do hospital e se empanturrou de pastéis e caldo
de cana. “Não morreu logo, mas deu o recado vital:
queria viver para aproveitar a vida, e não para constar entre os vivos, no qual
sempre fora vivíssimo”, narra com graça Carlos Heitor Cony.
Outra grande figura
com quem tive a honra de trabalhar, o jornalista Fernando Vieira de Melo declarava
aos quatro ventos que gostaria de morrer na sua sala de vidro no centro da
redação da goloriosa Rádio Jovem Pan, em São Paulo.
- Filho, eu não morrerei, porque
gente como eu não morre, simplesmente. Eu vou explodir !!!! – dizia Fernando no
início de um discurso que precedia um verdadeiro manual de instruções para a
sua morte que incluia um chamado de urgência para que Reale Jr voltasse da
França com a incumbência de remover o corpo e atirá-lo das escadarias do prédio
da Gazeta, na avenida Paulista, 900.
- Assim minha família receberá o
seguro por acidente! Treinei o Reale a vida inteira para esse momento! –
profetizava Fernando.
De um certo jeito,
esses dois homens fortes e geniais nos diziam que gostariam de morrer cercados
por tudo aquilo representasse o sagrado. Do caldo de cana à sala da redação,
passando por pastéis e discursos inflamados, Darcy e Fernando desejaram mortes
cercadas de verdade e daquilo que lhes emprestasse a idéia da eternidade ao
lado do que, de fato, é eterno.
Gostaria, do mesmo
modo, de cerrar meus olhos com a minha visão de eternidade. Algo simples e
tranquilo. Alguns poucos lugares poderiam sediar esse momento, tão único quanto
o nascimento.
A varanda da minha
casa no Guarujá seria um deles. Tenho certeza que o Paraíso é parecido com
aquilo que vivi na minha infância. Fecharia os olhos entre as paredes de
tijolos a vista com a montanha que escondia minha praia secreta no horizonte.
Certamente, ao abrir
os olhos, encontraria o mesmo cenário, com Valtão e Vô João jogando truco aos
berros e o cheiro da manjuba no fubá que só a vó Neta sabia fazer. Tigrão
também estaria por lá a pular nas asas dos anjos, tentando derrubá-los.
Também morreria feliz
no Caminito, em Buenos Aires, ao som de um tango bem tocado. Do outro lado da vida, com
Dona Helen em meus braços, dançaria eternidade afora, como dançamos em Palermo.
Pararia apenas para o repouso na melhor cama do mundo, no topo das escadas do
Hotel Alvear.
Hoje, cá onde escrevo,
também partiria com um sorriso largo nos lábios. À minha frente, um lago,
garças brancas e cisnes descansam o meu olhar em um cenário deslumbrante desse
lugar onde Deus me abençou para trabalhar e construir o futuro. Aqui, contemplo
o belo, que sempre roubou o meu olhar. E o belo me transforma.
Bastaria piscar e,
novamente, o Paraíso se reconstruiria talvez com a suavidade do sorriso e o doce olhar de
Rebeca com quem também bailei ali bem perto em uma sala de múltiplos espelhos e
notas românticas..
Morreria numa
quinta-feira, por uma questão estratégica. Meu velório seria de madrugada, com
o féritro pela manhã do dia seguinte. Assim, meus amigos poderiam enforcar a
sexta-feira e passar o final de semana lembrando velhas histórias.
Por falar em velório,
que fique aqui registrado: quero
algo muito sofisticado e um bom bar para servir meus cumpadres e comadres.
Vinho bom para os mais finos, Rioja, talvez... Whisky para os bacanas e cachaça
para os simples de coração, porque é
deles a última mesa.
Entre os quitutes,
escondidinho da Sheila, queijo da serra da Canastra, pimenta de biquinho,
empadinhas da Senna Madureira (as melhores...) e bolinhos de carne do Amigo
Leal, boteco da Amaral Gurgel, em São Paulo.
De um lado do caixão,
Rogério reconta velhas mentiras sobre o morto boêmio e suas aventuras pelos
interiores do Brasil e da capital paulista. De outro, Dudão compõe meu epitáfio
com o melhor texto da minha geração.
A trilha sonora mescla
Legião, Cazuza, Oswaldo Montenegro e Paulinho da Viola.
Quero Ana Lucia no
decór, Bia na recepção, Luciana na produção e outras tantas mulheres
fundamentais da minha vida testemunhando essa despedida, com pouco choro,
espero.
Luísa fará as honras
da casa, com levas especiais de pastéis de carne, de hora em hora.
Essa parte previsível,
pode mesclar momentos de emoção como o velório de Chateaubriand, aqui descrito
por seu biógrafo, Fernando Moraes.
“De repente, o silêncio é quebrado pelo
estridente barulho de uma martelada. Em seguida outra, e mais outra e mais
outra. Em uma enorme escada de pedreiro
está trepado o diretor do MASP, Pietro Maria Bardi, que continua batendo pregos
na parede - se cair dali ele desabará em cima do morto. Indiferente ao
escândalo que provoca, Bardi desce degrau por degrau e chama alguns operários
para pendurar, acima do caixão, três
monumentais telas do museu. No centro da parede, bem em cima da cabeça do
morto, vai a Banhista com o cão grifo, de Renoir, um nu de pouco menos de dois
metros de altura: expondo generosos seios descobertos, a banhista cobre levemente
o sexo com a mão esquerda, tendo na direita o manto que se espalha sobre o
chão, onde o cão está deitado. À esquerda e um pouco mais abaixo da Banhista,
Bardi manda os operários pendurarem um quadro de Ticiano, Retrato do cardeal
Cristóforo Madruzzo - o organizador do Concílio de Trento -, e do outro lado,na
mesma altura deste, também com quase dois metros de altura, outro purpurado: é
o esplendoroso retrato de corpo inteiro de d. Juan Antônio Litrente, secretário
da Inquisição espanhola, pintadopor Goya.
O
contraste dos retratos de dois cardeais cercando uma exuberante mulher nua,
sobre a cabeça de um morto, é chocante. Indignado, um dos diretores dos Diários
Associados
- um dos "minimaiorais ", como Bardi se referia a eles - se aproxima
do diretor do museu, e lhe tenta passar uma descompostura:
- Com efeito, professor Bardi! Isto
aqui é a câmara-ardente de Assis Chateaubriand, estamos diante das maiores
autoridades deste país, e o senhor me coloca dois religiosos ladeando uma
mulher despida? Durante um velório? Isto é um escândalo, vamos tirar esses
quadros daí já!
Bardi
abre os braços e responde, também na frente de todos,com franqueza
desconcertante:
- Mas dottore, esta é a minha última
homenagem a Assis Chateaubriand, vero? Nesta parede estão as três coisas que
ele mais amou na vida: o poder, a arte e mulher pelada.”
Extravagâncias à parte, gostaria de celebrar a morte como celebrei a vida. De
ser lembrado pelas minhas verdades, por menos verdadeiras que sejam. De levar
comigo, a lealdade dos meus amigos, o carinho da minha família e festejar o fim
em meio às melhores lembranças.