sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Salve o Corinthians !!!! (*)


Naquele Corinthians e Palmeiras ele só pensava nela. Nunca gostou de futebol. Desde muito menino, sua relação com a pelota era distante, sem a menor intimidade. E não adianta: entre meninos, quem não joga, não torce.

Ela, morena faceira, viu anos antes Sócrates encantar o mundo com seu calcanhar, com sua elegância.  Filha e irmã de corinthianos, essa alvinegra de nascença não perdia um jogo. Na faculdade,  não havia trabalho ou prova capaz de impedi-la de correr pro estádio às quartas-feiras.

Mas aquela quarta era diferente.  O rapaz metido a politizado, típico bicho-grilo-pós-ditadura, convidara a moça para um jantar. Galanteador, descobriu seu endereço e enviou flores como convite.

Ela nunca entenderia seu galanteio. Ele nunca entenderia sua verdadeira paixão.

As flores foram ajeitadas às pressas numa garrafa transformada em vaso - ela não era acostumada a manifestações daquela espécie - e as costas do cartão que acompanhava o ramalhete serviram perfeitamente para a resposta:

"mas, puxa, justo hoje? dia de derby? não dá. PS: adorei as rosas."

O garoto da entrega levou de volta a magra gorjeta e, junto, o pequeno envelope. Enquanto a garota corria de volta pro seu quarto decorado em preto e branco para a concentração de praxe.

O rapaz tinha combinado de receber um telefonema da floricultura confirmando a entrega. Feito. Foi confirmado inclusive que um bilhete tinha retornado.

"Pode ler pra mim?", pediu, encafifado. Feito também.

"Derby?", perguntou, misto de aflição e tristeza, no que o moço das flores fez questão de explicar:

"É como a gente fala quando joga Palmeiras e Corinthians. Classicaço! Verdão, eô".

Para ele, Derby era uma marca de cigarro de segunda. Sim, ele fumava, porque, na época, era bem bacana fumar. Todos os seus amigos de copo e política eram fumantes inveterados.

E que história é essa de “adorei as rosas”? Isso lá é resposta?

“Criatura alienada, essa moça”, resmungou nosso herói.

Ele ficou completamente desolado. Falaria para ela coisas sobre suas convicções de como o cancelamento da dívida externa poderia livrar o Brasil do processo inflacionário e devolver o país ao ritmo de crescimento pré-ditadura.

Também poderia comentar sobre o relançamento do Pasquim e da sua coleção particular com os originais dos anos 60. E até sobre aquele exemplar de Realidade que conseguiu em um sebo no centro da cidade.
“Perderia meu tempo”, continuou praguejando.

A certeza é a pior praga da juventude. Mal sabia ele que ali estava uma futura mulher de negócios bem-sucedida, uma apaixonada pelas formas e cores de Almodóvar, mãe exemplar e amiga das mais fiéis.

Não, nada disso fazia parte do horizonte do boboca ferido no seu intuito. Bastaria que mudasse o dia do jantar. Mas, ele preferiu mudar toda a sua vida.

Ela, por sua vez, foi ao clássico - um morno zero a zero, com direito à garoa, carro longe à beça, amendoins murchos - e, em algum momento daquele perrengue, pensou no quase-jantar. Nunca tinha olhado pro tal com olhos de cobiça: vivia reclusa em uma turma muito particular, que respirava futebol. E contava o fato de que nessa turma tinha um affair, ou quase isso, com um corinthiano da ZL - que, naquela quarta-feira, furou. Ou seja, jogo mais que morno: gelado.

Mas então o colega bicho-grilo dito politizado queria jantar com ela? Elazinha? Que assunto teriam? Que liga isso daria? Voltou pra casa tremendo de frio, mas com a cabeça quente, pensando em como seria. E pegou no sono, olhando pro vaso improvisado que acolhia as rosas vermelhas - suas preferidas, passionais como ela, como sua relação com o Corinthians e com a vida.

E assim foi. Vida que segue para os dois, com tantas mudanças, mas duas questões que permaneciam firmes: um novo convite pra jantar (que não veio) e a paixão dela pelo Timão.

Nesse momento, a vida deu mais um grande salto. Aquele solavanco do sonho universitário para a realidade do mundo dos adultos.

O rapaz substituiu a política pelos negócios. A dívida externa foi paga e ele nem notou.... A garota tornou-se empresária e o Timão, ahhh o Timão, motivo de sangue, suor e lágrimas divididas com dramas familiares, perdas, ganhos e tropeços.

Cada qual no seu caminho, encontrou o par mais próximo entre o jantar romântico e o  Pacaembu. Ele casou-se com uma bela ragatza e ela com um apaixonado por futebol.

Na nova família, o ex-bicho-grilo-politizado-atual-homem-de-negócios e, quem diria, professor exigente, mergulhou em um consenso tricolor irritante. Consenso e futebol não combinam, definitivamente.

Seu lado político reascendeu em favor da boa polêmica. Tornou-se Corinthiano apenas para provocar sogro, sogra, primos e primas.

Ela descobriu que entre quartas e domingos havia espaço para outra paixão além do futebol: o cinema. Mergulhou de cabeça nas tintas de Almodóvar e viu o tempo passar com sua filmografia.

Fale com ela, Ata-me, Tudo sobre minha mãe e Volver embalaram sonhos e reflexões. Na tela, as cores de uma juventude por vezes sombreada pela realidade preto e branca.

A vida fez com que o rapaz e a moça virassem tudo ao avesso mais de uma vez. Queriam sim reencontrar certezas e vibrar com emoções e ansiedades que aos poucos desapareceram....

De algum modo, procuravam aquela noite de quarta-feira, quando tudo poderia mudar....

E o filme da vida provocou o reencontro - quem diria - logo após um jogo do Timão, em A Pele que Habito....

Era mesmo ela, ali, na saída do cinema, com o Shopping vazio como testemunha. As covinhas e o nariz perfeito.

Sim, era ele também, com cabelos grisalhos e uma barba mal aparada. Conservou o charme pseudo intelectual de esquerda.

A torcedora mostrava orgulhosa a foto do seu menino, quase da mesma idade da pequena cuja imagem era o pano de fundo do celular do pai.

Ambos mais serenos e ponderados nem tocaram naquela noite, naquelas flores, naquele jogo. Comentaram sobre o final infeliz do filme e, claro, sobre o campeonato que vivia seus últimos momentos.

Nas redes sociais, falaram mais sobre a vida, o fim dos casamentos e suas procuras – antigas e novas.
Dessa vez, o convite veio dela:

“Vamos juntos assistir a final do campeonato? Um derby histórico !!! Podemos levar as crianças”, propõe.

O reencontro aconteceu no almoço de domingo. Novamente um empate, porém, bem mais emocionante que naquela quarta-feira.

Já no momento vídeo-game, ele respirou fundo e reuniu todas as suas forças para relançar o convite, perdido há 24 anos.

“Eu queria....”, começou...

Mas, sua filha interrompeu:

“Pai, pai podemos ir ao cinema juntos assistir Harry Potter? Diz que sim, vai...  Aí, depois, vamos comer um hambúrguer....”

A moça ansiosa, ainda insistiu:

“Você dizia....”

E ele respondeu:

“Dizia que o jogo foi incrível e precisamos levar esses dois ao cinema. Quando é bom pra você? Quarta-feira?”

(*) Texto escrito em parceria com a jornalista Renata Ruffato... Revisitamos o passado brincando com a ficção..

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