sexta-feira, 23 de março de 2012

Tigrão

"Gatos não morrem: mais preciso - se somem - é dizer que foram rasgar sofás no paraíso e dormirão lá, depois do ônus de sete bem vividas vidas, seus setes merecidos sonos."
Nelson Ascher



Naquela tarde, bateu um desconforto, um pressentimento esquisito. Mary estava mal, eu sabia. Mas, naquela tarde, o sentimento era diferente.

Mary era uma gatinha siamesa doce e formosa. Bichinho especial aquele. Vitimada pela maldade esquisita que move alguns monstros que se acham gente, Mary foi atingida por uma dezena de chumbinhos alojados em suas costas.

Sobreviveu com dignidade por mais de uma década graças ao cuidado e carinho de Priscila, mãe zelosa de gato e gente, com quem tive a honra de viver uma grande história cheia de amor e intensidades.

A agressão sofrida fez de Mary um animal mais delicado que a média. Andava com critério e se amoquifava cheia de cuidados em alguns poucos colos selecionados, entre os quais, para o meu orgulho, o meu!

Mary era desprovida das maldades felinas. Dava e recebia delicados carinhos. Miava de um jeito diferente, como se quisesse falar.

Tanta delicadeza me estimulou a procurar um bichinho desses pra mim. Fui em busca de uma gata adulta, de preferência.

Há muito minha filha pedia um novo animal de estimação para encher de afagos na casa do pai, quando estivesse longe da Vivi, cadelinha linda que vive com minha ruiva e a mãe.

Em contato com uma ONG fui apresentado a um bando de gatos filhotes liderados por uma fêmea malhada, linda e doce como Mary.

Mas, entre os filhotes lá estava ele, um sialata tigrado com olhos azuis, uns 12 centímetros e uma cicatriz charmosa, fruto de uma pequena hérnia extraída pelos veterinários da ONG.

Me aproximei do pequeno e ele, rapidamente, virou de bruços e abraçou minha mão, como que dissesse “sou eu, sou eu....”. Passei o filhote para as mãos de Luísa e ele mandou mais um abraço. Pronto estava escolhido!

Olhei bem para ele e disse:

- Filha... ele mais parece um tigre, um tigre branco!

Batizamos ali mesmo Tigrão Camargo Sclavi, o nosso Tigrão!

Pouco tempo depois, Priscila me ligou emocionada, pedindo os melhores pensamentos para Mary. A doçura estava internada com uma doença renal crônica e, sabíamos, incurável!

Naquela tarde, depois de dias de internação, os médicos e Priscila decidiram que estava na hora de Mary seguir tranquila para o céu dos gatos. Senti que chegava a hora e liguei para a clínica. De fato era essa a notícia!

Um choro dolorido me invadiu a alma. Passei a tarde e a noite sem entender direito aquele sentimento. Tigrão testemunhou aquela tristeza, com carinho e atenção. Naquela tarde, naquela noite, não bagunçou. Foi companheiro e solidário!

Mas, outras tardes e noites viriam. O gatinho dócil dava lugar à uma praga esperta, que pulava  como um tigre, por todos os lugares. Um bicho que virava latas de lixo, não resistia a uma sacola plástica e comia tudo o que não devia.

Tigrão tinha uma especial fixação por pés. Adorava agarrar pés com unhas e dentes afiados. Afe... Como era dolorida aquela mordida....

Esse bicho quebrou metade das minhas taças, destroçou o braço do meu sofá e aniquilou duas cortinas.

Tinha ruidosas discussões com Tigrão a cada nova bagunça. Quando dava uma bronca de dedo no bichano, ele respondia com um salto e um arranhão. Gato corinthiano, como eu e lulu, não fugia da briga!

 Ele já me confinou no quarto, trancando a porta à patadas!

Em uma das viagens que fiz cheguei em casa e percebi um cheiro horrível. Ele tinha estourado uma embalagem de leite no topo do armário. O líquido escorreu e sujou tudo o que estava embaixo. Depois azedou... Eca...

Meu neto de pelo e rabo era assim, de tirar o fôlego. Mas todos os dias, ao chegar em casa recebia um carinho debaixo do queixo, deitado em meu colo como um bebê, com as patas rendidas tamanho o prazer.

Dormia ao meu lado não raro com uma só pata sobre o meu braço, certificando-se de que dali eu não sairia, pelo menos durante a noite.

Acompanhava tudo o que eu fazia com aquela curiosidade engraçada e desconcertante. E quando digo tudo é de tudo que estou falando....

A cada dia, a caminho do trabalho, na mesa do bar ou onde quer que eu estivesse, uma história do Tigrão era pauta certa e sempre motivo de boas risadas.

Na manhã desta quinta-feira, meu menino achou que poderia voar. Acho que, no fundo, Tigrão queria conhecer a doce Mary e me ouviu dizer que ela foi para o céu dos gatos.

Ele saltou e nos deixou com uma saudade maior que o mundo. Que Deus abençoe essa criatura sapeca que agora deve estar tomando um copo de leite sem colarinho com sua doce donzela...


4 comentários: