- Quero falar com o
Bispo! - solicitou o garoto de 11 anos na recepção da Cúria Diocesana do ABC,
no centro de Santo André.
- A quem devo anunciar? – perguntou a senhora simpática da recepção.
- Diga que é Ronald Sclavi, chefe dos coroinhas da Paróquia
Sagrado Coração de Jesus.
Diante da cena inusitada e da ousadia daquela criança,
minutos depois, o Bispo abriu as portas do seu gabinete para mais uma lição de
fé, razão e esperança.
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Missa, para mim, tinha cheiro e gosto de pipoca. Todos os
domingos, eu, meu pai, minha mãe e irmãos seguíamos para a Igreja Sagrada
Familia, na pequena São Caetano do Sul. O pipoqueiro já estava à porta no
início da missa. Na Liturgia da Palavra,
o aroma de manteiga derretida invadia a casa do Senhor.
Pregava os olhos no folheto da missa e acompanhava tudo com
atenção à espera do desfecho, da hora de degustar aquela delícia. Assim decorei
as primeiras orações. O Credo estava no meio da missa. Depois a Oração pela
Paz, até a oração final, pós-comunhão, Ave Maria e a benção! Pronto! Hora da
pipoca!
O interesse gastronômico avançava e a curiosidade também.
Que gosto teria a hóstia? De tanto infernizar minha mãe, dona Helen finalmente
pediu ao padre uma amostra não consagrada para que eu pudesse provar.
Aos sete anos, fui para Santo André, onde minha relação com
a religião mudou. Era o momento do
catecismo e a Igreja começava a se
apresentar como um ponto de encontro, de troca, alegre e divertido.
A catedral de São Caetano dava lugar a uma pequena capela de
bairro, aconchegante, liderada pelo Padre Primo – italiano bondoso, simples,
com uma especial vergonha de pedir dinheiro aos fiéis para a construção do novo
templo.
Cinthia era o nome da catequista, com cabelos longos, dona
de um Fiat 147 equipado com um câmbio tão duro que a pobre tinha que usar as
duas mãos para engatar a ré.
Lembro-me como se fosse hoje, quando a moça detalhou a missa
em seu sentido mais amplo. Fiquei impressionado e, ao mesmo tempo, envergonhado
com a pressa que me fazia acompanhar o rito.
“Fazei isto em memória de mim”, pedia Cristo na consagração do
vinho. Era a um pedido divino que estávamos atendendo naquele momento.
Outro trecho litúrgico que me emocionava dizia: “eu não sou
digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”. Mais
uma referência ao Evangelho em uma passagem que narra o pedido de um soldado
pela cura do seu servo doente.
O livreto de capa vermelha tinha perguntas e respostas que
tinham de ser decoradas. Fui o primeiro aluno da sala nessa missão. Algumas
perguntas e respostas guardo até hoje na memória.
Candidato a coroinha, meu interesse pelo rito foi crescendo
a passos largos. Os equipamentos do altar: cálice, âmbula, patena, sanguíneo,
pala, corporal e o sacrário – este improvisado em um velho cofre, revestido em
dourado.
Tudo tinha um sentido, uma ordem, uma repetição de gestos marciais,
transmitidos por gerações de religiosos, desde a última ceia.
Vestido com calça vinho, camisa branca e gravata de cetim,
recebi minha primeira comunhão após confessar poucos e tolos pecados ao Padre
Primo, pagos ao custo de cinco ave marias e três pai nossos. Atire a primeira
pedra quem teve um melhor desempenho!
Ajudava todas as missas, colhia prendas para quermesses, me
confessava semanalmente. Tornei-me uma espécie de menino de ouro da paróquia,
pulando de casa em casa dos fiéis nas novenas de natal.
Em um almoço em minha casa, Padre Primo anunciou que estava
de viagem marcada para a Itália e que um novo sacerdote ficaria no seu lugar,
temporariamente.
Foi a última vez que vi aquele franciscano bonachão. Na
semana seguinte, um jovem padre assumiria a paróquia. Vigoroso e alegre, o nome
era Antonio dos Anjos Salvador (se não fosse padre, o que mais seria com esse
nome?).
O novo padre encantou os fiéis. Rapidamente promoveu bingos
e festas para finalizar a obra da igreja, com linhas modernas em concreto armado
e vidro temperado.
Padre Salvador fundou o movimento de jovens com um nome
engraçado: Jupam (Jovens Unidos por um amanhã melhor). Aderi rapidamente.
Em uma conversa com o padre, ainda não entronado vigário,
falei do quanto a missa fazia sentido pra mim. Disse que a cada vez que o
Cordeiro de Deus era anunciado meu coração batia forte. Enfim, pela primeira
vez, admiti a possibilidade de uma vocação sacerdotal.
Nas visitas à Cúria, com seu fusquinha vermelho, acompanhava
o futuro vigário, orgulhoso de levar ao chefe um candidato a padre.
Quando entrei pela primeira vez no gabinete do Bispo, aquele
homem me recebeu com um sorriso especialmente generoso. Ao contrário do
esperado, o Bispo não estimulou de pronto o que seria minha vocação, mas
questionou o garoto sobre a verdade daquele impulso.
Se viesse a me tornar sacerdote, teria de deixar a família,
abraçar o celibato, talvez seguindo para uma capela no interior, longe de tudo
e todos. Citava o apóstolo Paulo, em sua pregação sobre fé e razão.
Que homem grande aquele Bispo!
Grande o suficiente para abrigar na Catedral de São Bernardo
do Campo o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, desafiando a
Ditadura e setores conservadores da Igreja.
O mesmo bispo, já cardeal, reedificaria a rádio nove de
julho, exemplo do melhor foi feito na comunicação religiosa brasileira.
Para aquele menino, dialogar com seriedade com alguém dessa
estatura era uma forma de pensar a vida, o futuro e a própria construção dos
valores.
O exercício da dúvida, proposto pelo Bispo, aos poucos, ganhava outras feições .
Daniela era a menina de cabelos encaracolados que
frequentava as festas paroquiais e passeava pelo bairro na garupa de uma
Garelli, pequena moto guiada pela sua irmã mais velha.
Ela tinha um sorriso doce, covinhas charmosas e me olhava de
um jeito todo particular. Fiquei profundamente confuso. Achei que havia caído
em pecado. Minha vocação estava em xeque.
A dúvida ganharia contorno de tragédia naquela manhã de
1982. Padre Salvador seria empossado como vigário da paróquia. O próprio Bispo presidiria a cerimônia. Pela primeira (e única) vez, seria o coroinha
daquele homem tão importante na minha vida.
Realizei minha tarefa com todo o cuidado. Desde a arrumação
do altar até cada toque do sino. Fui o primeiro a tomar a comunhão e acompanhei
com redobrada atenção cada palavra do sermão.
Ao final da missa, enquanto todos estavam reunidos
festejando na casa paroquial, meu irmão Marcos chegou com uma expressão
assustada:
- O vô não está bem, temos que ir pra São Caetano!
Imediatamente, segui com ele no Corcel II verde, dirigido
por Valter, o mais velho dos três. Ao entrar na avenida Goiás, com Miltom
Nascimento cantando no rádio, recebi a notícia.
Também a caminho da igreja, como fazia todos os domingos, Vô
João sofreu um enfarte fulminante e nos deixou.
Sim, naquela mesma manhã enquanto o futuro cardeal erguia o cálice
para minha emoção, meu avô – referência de vida, homem elegante e preocupado
com tudo e todos – partia para sempre.
Toda a minha convicção religiosa caía por terra. Fé e razão
entraram em um choque que a minha cabeça e meu coração não estavam preparados
pra suportar.
Duas semanas se passaram e tudo parecia complicado, confuso.
No auge da crise, só uma pessoa poderia acalentar-me a alma.
Era aquele homem que falava sobre Paulo e questionava a minha vocação a quem eu
deveria procurar.
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Dom Claudio Hummes me recebeu com o mesmo sorriso e voz
potente.
- Meu filho, a que devo a honra da sua visita? – perguntou.
- Bispo, o senhor poderia me ouvir em confissão? – indaguei,
sem dizer bom dia.
Respeitosamente, ele iniciou o ritual, uma espécie de código
que me fez escancarar o coração sobre aquela mesa de madeira maciça.
- Estou confuso sobre a minha fé, minha vocação, sobre
tudo... Acredito em Deus, claro, mas não consigo entender meu coração. Perdi
meu avô e gosto dessa menina. Não sei o
que fazer.
Dom Claudio fez várias perguntas para entender melhor a
história. Respondi a todas com muita verdade, aos soluços.
Por fim, o bispo concluiu:
- Filho, há várias maneiras de servir a Deus. Você não
precisa tornar-se um sacerdote como eu. Apenas conserve em seu coração o
sentimento que está por trás da tristeza com a morte do seu avô e do
encantamento por Daniela: o amor! Seja um bom pai, um bom profissional, um bom
marido e Deus estará contigo, sempre!
A confissão terminou com uma benção e um presente, ao invés
da penitência. Ganhei um pequeno Evangelho com uma linda dedicatória na contracapa.
Saí da Cúria com a alma leve e um mundo inteiro pela frente.
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Aquela foi minha última missa como coroinha. Eu e Daniela
namoramos até minha mudança para São Paulo, meses depois. Falei com ela pela última vez há mais de 10
anos.
Padre Primo nos deixou e padre Salvador é meu amigo no
Facebook.
Sou pai, marido e profissional. Desempenho cada uma dessas
funções com dedicação, amor e vocação. Ainda frequento a missa e me emociono
com a Liturgia.
O bispo foi nomeado Cardeal e segue o seu caminho como um
dos mais influentes religiosos brasileiros.
Hoje, aos 78 anos, Dom Claudio exercita sua fé, sua razão e
suas dúvidas na eleição que escolherá o sucessor de Bento XVI. Ele mesmo pode
ser eleito.
O homem que me ouviu com tanta generosidade é a prova viva que o
equilíbrio e o bom senso, caminham juntos com a fé.
Quando a fumaça branca anunciar o novo Pontífice, o cardeal
terá deixado mais uma marca na história da Igreja, no segredo do Conclave. Com
certeza, a mesma marca de sabedoria que imprimiu na minha vida, no segredo da
confissão.
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