quarta-feira, 2 de maio de 2012

Jack, Francis, Chico e Caetano


A garrafa era linda, com formato de gota e uma tampa robusta revestida em cortiça. Derramei a primeira dose já com lágrimas nos olhos, no chão de carpete daquela sala simpática, meu primeiro apartamento. Meu amigo não estava ali. Era o seu destino que eu recusava gole a gole...

Comprei aquela edição especial de Jack Daniels  para beber ao som das canções de Caetano que ele me ensinara a ouvir e admirar....

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Sempre tive aversão aos teóricos da chamada “liderança”, essa gente que prega a ideia de que pessoas podem transformar-se em líderes mediante algum tipo de treinamento.  Bobagem grande.  Esse expediente faz de jovens promissores chefes inexperientes, verdadeiros maquiavéis-mirins que tentam exercer poder sem maturidade.

Os teóricos fecham um estereótipo e ensinam os pobres meninos e meninas a reproduzi-lo, como papagaios corporativos.... Sem verdade!!!!

Já tive líderes de todos os tipos, cores, sexos e humores. Alguns gritavam, outros sorriam! Alguns eram nervosos, outros calmos! Enfim, nenhum padrão, apenas uma capacidade de reunir em torno de si um grupo de pessoas com um sentimento muito especial: a admiração.

Hoje, comando um grupo de jovens brilhantes com um brilho nos olhos típico de um momento muito especial que vivi nos anos 90. Éramos todos muito jovens e mal sabíamos que estávamos fazendo história.

Sonhávamos o sonho de Fernando Vieira de Mello, sujeito genial, personagem fixo desse blog, que, após 40 anos de Rádio Jovem Pan, inaugurava sua própria rádio. Mas, esse general tinha um coronel que era quase seu oposto, seu espelho.

Sujeito magro, desengonçado, com óculos de grau e olhos apertados. Vestia sempre uma calça com a camisa pra fora, ambas de largas e confortáveis.

Aquele moço beirando os trinta anos tinha uma deselegância charmosa, falava baixo e não mandava: convencia. Em torno dele, todos nós, meninos e meninas – muitas meninas – trabalhávamos com vontade e bom humor.

O nome era Paulo Franciscon, filho de um juiz de futebol que conheci na redação da Pan. Ele era editor de matérias e trabalhava em dupla com Thays Freitas, unindo textos e sons em matérias sempre muito bem acabadas.

Na nova rádio, assumia funções de responsabilidade e, de fato, sem um cargo formal, comandava a garotada.

Fernando Silva e Arnaldo Comin (seus fiéis escudeiros) produziam os textos do primeiro jornal que tinha como âncora o barulhento e polêmico Ney Gonçalves Dias. Trabalhavam de madrugada, sob a batuta daquele maestro de gestos tímidos.

Eu, Andréa Martins e, mais tarde, Ana Paula Sousa e Silvia Correa, cuidávamos das notícias policiais sob a supervisão de Hélvio Borelli, repórter experimentado com fontes espalhadas por toda a cidade.

Ana Paula, aliás, tínhamos duas. A segunda, Anna Buchala, trabalhava ao lado de Maria Elisa Porchat, ambas sempre muito elegantes, no meio daquela garotada desajeitada.

Depois do primeiro jornal - o Jornal É - era a vez da nossa revista diária, o programa É de manhã, dirigido por Adriana Meola, musa do nosso herói.

Casal bonito de se ver, inspirou namoros e relações intensas que hoje ganham um ar nostálgico e bom de lembrar.

Até porque, depois da rotina hard news (ou no meio dela...) não faltavam noitadas em botecos, ou nos apartamentos dos amigos, regados às caipirinhas de Rui Monteiro, muito cigarro e discussões calorosas.

Uma das pautas mais frequentes era a briga Chico x Caetano, com palpites cheios de história do mestre Sabá, comentarista musical que sacava da sua agenda telefones de ícones da MPB.

Com seu contra-baixo, Sabá iluminou noites memoráveis ao lado de Comin no violão, dono da melhor versão de Georgia depois de Ray Charles.

Naquela turma havia lugar para outras figuras, as mais diversas. Inesquecíveis o sorriso de Luciana DelFiol; o uniforme de aeromoça de Andrea Ciaffone; Claudia Granadeiro e o seu francês impecável; os papos com Regina Augusto durante os plantões; Dedé Gomes provocando os locutores durante o jornal e outras tantas histórias.

Meninos como Guilherme Gaspar, Ana Carolina Soares e Luciana Bonafé dividiam as barulhentas máquinas de escrever com jornalistas da velha guarda, que seguiam os passos de Fernando por onde quer que ele fosse ....

Para esse grupo, Franciscon era uma espécie de porto seguro, confidente, leal e amável. Aprendi com esse rapaz a ouvir com calma, argumentar com propriedade, ceder sem abaixar a cabeça.

Com aquele jeitinho tímido, Francis era o único capaz de fazer Fernandão mudar de idéia, segurar a língua do Ney e discutir pautas com medalhões do rádio, como Milton Parron, o repórter da cidade.

O jovem chefe coordenou uma cobertura improvável por telefone quando Dr. Ulysses Guimarães desapareceu em um acidente de helicóptero. Falamos ao vivo com barcos salva-vidas que participavam das buscas em mares cariocas.

Ainda por telefone, sob o seu comando, cobrimos a renúncia de Collor, o assassinato de Daniela Peres, dezenas de rebeliões e histórias cheias de emoção e verdade, de um jornalismo com poucos recursos e muita paixão.

Franciscon também sabia ser duro. Levei boas broncas do meu amigo com meus atrasos semanais, descuidos de informação e outros deslizes típicos dos focas metidos como todos nós éramos.

Esse cara nos fazia acreditar que éramos muito melhores do que poderíamos ser. Acreditamos e fomos! Simples assim!

Essa turma está toda muito bem colocada. Muitos de nós, sem falsa modéstia,  referências em suas áreas de atuação.

Eu deixei o jornalismo para assumir uma empresa familiar, mas o velho Francis continuava na minha vida, na minha rotina.

Acreditava que ficaria longe do jornalismo, mas perto das pessoas, dos meus amigos, daquela gente que já era parte da minha história. Mais tarde, descobri que não conseguiria negar a vida que escolhi e voltei....

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Na minha lua-de-mel, após uma viagem para Argentina, comprei aquela garrafa. Franciscon e Adriana seriam meus convidados especiais para uma noite de boas lembranças. Falaria dos meus planos de homem casado, do sonho de Luísa, da construção da vida adulta...

Fernando Silva, já na chefia de reportagem da Rede Globo, me ligou com voz embargada. Um câncer pegou de surpresa o nosso chefe-menino.

Depois dessa notícia, falei com Franciscon apenas duas vezes. Uma delas, no aniversário de Ana Paula Sousa. Ele falava sobre a doença com a tranquilidade de sempre...

Na segunda vez, por telefone às vésperas de um revellion, de 97 ou 98, tentei elevar o humor do meu amigo e depois desmanchei.

Mas a verdadeira despedida aconteceu quando abri aquela garrafa de Jack Daniels. Recordei os melhores momentos, as maiores lições, ao som da voz chorosa de Caetano, cantando If you hold a stone.

O ídolo de Franciscon gravou essa canção na solidão londrina, durante seu exílio. Como Caetano, chorei a solidão que se anunciava para mim e para essas pessoas que perderiam uma referência tão importante.

Durante muitos anos, meu cérebro negava a perda. Queria compartilhar meus bons momentos, as conquistas, os sonhos realizados e dizer o quanto aquele sujeito foi fundamental para o homem que eu tentava forjar.

Hoje, entre um Jack Daniels e outro, a saudade bate...

Mas o fato é que, graças à liderança de Franciscon, nós - os meninos e meninas da Trianon - nos conservamos perto, mesmo que distantes. Vez ou outra, nos reencontramos, com filhos crescidos, histórias vividas e um especial senso de proteção, de querer bem.

Nunca responderemos quem foi o melhor, Chico ou Caetano... Acho que o melhor foi Franciscon que nos uniu a todos.

Um brinde, meu velho!
http://www.youtube.com/watch?v=TYRcKaXw6EQ&feature=share

10 comentários:

  1. Lindo texto , Ronald. Que bom lembrar do Franciscon e de todos nós juntos. Um brinde a ele, que viveu pouco, mas intensamente. Bjos.

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    1. Ronald, não sei se te conheci, é possível que sim. Eu dividia o apartamento com o Franciscon, na Peixoto Gomide e ele era meu irmão, meu pai, meu amigo, meu cachorro engarrafado. Lembro todos os dias dele e foi emocionante ler a sua descrição. Muito bem falada essa questão da liderança natural do cara. Ele hipnotizava até formigas com a sua poesia. O melhor certamente era ele mesmo, e acho que jamais haverá alguém como ele- comentava isso com a Adriana Méola há um mês em pouco, quando ela estava visitando o Brasil. Obrigado por ter escrito um texto tão bonito e por ter uma memória tão vívida dele.

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    2. Caríssima, eu que agradeço a sua leitura...
      Se tiver contato com a família, por favor, faça o texto chegar a eles, ok? grande abraço

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  2. Saudades desse casal e dessa pessoa maravilhosa que foi Franciscon, Ronald. beijo. Renata Perobelli

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  3. Ronald,

    Dias desses bateu uma saudade do Franciscon, com quem tive o orgulho de trabalhar na madrugada da Jovem Pan. No google, achei seu blog e que bom ter sido assim. Você relembra bem o cara legal, sério, ótimo jornalista e injustamente roubado de uma vida longa. Tudo que você descreve é bem fiel ao Franciscon. Dá para revê-lo na redação, invariavelmente com as pernas dobradas naquelas cadeirinhas amarelas de um jeito que nunca entendi ou conseguiria imitar! Era a serena calma dele, basicamente apenas flutuando na cadeira, caneta na boca e datilografando sem alarde mas com a competência de sempre. Que saudade... Lucio Mesquita

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  4. Nossa Lucio, quanto tempo... Quantos jornais da meia noite, plantões e bons momentos naquela redação... Por onde andas? Está no face?

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  5. Ronald,

    Acabo de encontrar esse texto. Quantas (boas) lembranças da Trianon, e quanta saudade do nosso querido amigo Franciscon. Lembrei de todas as pessoas citadas, do início da rádio, de tantos momentos felizes.

    Beijo,
    Lele

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  6. Lele querida
    Que bom que curtiu... bom reencontramigos nessas memórias... beijo e saudades....

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